10 Janeiro 2016      10:49

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O GANGUE DO ARGANEL (OU O FLAGELO DO PRECONCEITO)

Admiro aquele género de pessoas que consegue compreender que uma ofensa só é ofensa quando os próprios permitem que o seja. Admiro, sinceramente, as pessoas que vão vivendo a vida com uma atitude relaxada e segura relativamente não aos bens que detêm, mas principalmente á personalidade que vão compondo e ajustando por si e para si, sem necessitar daquele circo social já tão habitual que passa por, numa atitude tanto de desespero quanto de comodismo, inflacionar a opinião dos outros acerca de si para de seguida a adoptar enquanto definição do self. Acredito, caro leitor, gradualmente com redobrado afinco que essa, ao contrário do que lhe digam, é a verdadeira chave para a paz de espírito e para a felicidade. Posto isto, devo ainda dizer-lhe que eu sou uma dessas pessoas que descura o politicamente correcto e o socialmente aceitável quanto baste (algo que já deve ter compreendido se me tem vindo a acompanhar) respondendo apenas á minha consciência e às atitudes alheias segundo a máxima da justiça.

Quão agradável seria viver num mundo em que o comum mortal conseguisse, simultaneamente, não se ofender pessoalmente com assuntos de foro universal e saber questionar todas as suas certezas de quando em vez? Se nada mais resolvesse penso que resolveria aquilo a que chamamos o preconceito. Não um preconceito qualquer mas o preconceito gratuito – aquele que brota sem a pessoa que o inflige saiba bem como ou de onde a não ser que da directa consequência de uma chapada de luva branca num ego demasiado enegrecido (e frequentemente empobrecido) por anos e anos de ocos enaltecimentos e raros momentos de reais arrelias.

Tenho vindo, desde tenra idade, a sentir esse mesmo preconceito gratuito na pele, na mesma pele que tem traços negros de tinta que formam, mais do que desenhos, mais do que padrões, memórias das feridas de várias guerras travadas nos meus humildes vinte e dois anos. Na mesma pele que não nega um piercing no nariz e uns quantos nas orelhas, na mesma pele que, ao final do dia e resumindo é a minha pele. É a pele com que apenas eu tenho que viver, dentro da qual apenas eu vou estrebuchando contra as agruras do que é ser-se humano sem se saber ao certo o que é ser-se humano aqui. – A decisão de decorá-la e emoldurar as minhas vitórias como se de diplomas na parede de uma casa é, portanto, minha. A decisão é sempre e indiscutivelmente daquele que conhece cada ruga, cada imperfeição, cada sulco muito mais efectiva e dolorosamente do que qualquer outro que apenas observe estas características. Tudo isto me leva, finalmente, a questionar então o porquê de socialmente, aquilo que um indivíduo decide fazer com o seu corpo, ser posto em perspectiva, em discussão levando muitas vezes a que esse indivíduo passe pelas mais variadas situações de confronto de ideias pessoais quando não necessita nem deve perder tempo com justificações.

Esta semana, no entanto, todo este desfile de preconceito sufocado tomou, para mim, o seu auge. Perceba, caro leitor, não foi a expressão depreciativa ou a intenção de ridicularizar que me chocou, mas a idade da pessoa que se referiu ao meu grupo de amigos como “o gangue do arganel”. Estou já mais que habituada aos olhares possessos das mulheres adultas quando vou buscar a minha irmã á escola primária, estou extremamente bem adaptada ao gingar negativo da cabeça que mais parece um tique nervoso mal conseguido ou ainda às análises de estilo género raio x que resultam apenas na minha reciprocidade desse olhar simpático. Divertem-me bastante até essas demonstrações culturais dignas de outro tempo e outra idade, essas demonstrações que acabam por ser apenas uma falta de educação e de interesse pela vida própria que, a julgar pelos ideais, pouco tem de animada ou estimulante. Tudo bem, ainda assim. Devemos compreender que estas pessoas, dentro dos seus trinta e tais, quarenta anos, foram educadas segundo outros preceitos e outras mentalidades. Mas como compreender que um jovem nos seus dezoito anos tenha assim tão marcada esta aversão á diferença?

Isto sim,  já me preocupa. Preocupa-me principalmente porque é este género de geração que necessita de agarrar o mundo e tentar torna-lo num local melhor, porque são estas gerações vindouras que devem, ainda mais, tentar fomentar o que a minha geração está a lutar por conseguir implementar. E, sejamos sinceros, este nosso planeta está já demasiadamente concentrado no demarcar da diferença. O que ele precisa é de integrar a diferença como uma mais valia e não como um alvo de chacota para mentes que não conseguem avaliar para além dela. O que ele precisa é do bastante de evolução para compreendermos que a diferença não só deve existir como faz falta que exista.

Por outro lado, analiso, estes preconceitos nascem e adensam-se apenas pela falha de uma educação histórica e global que todos deveríamos ter já adquirido ou, no mínimo, ter procurado adquirir. Porque se alguns ousam pensar que um piercing, uma tatuagem, uns quantos” studs” ou “spikes” são apenas uma forma de chamar á atenção e uma novidade actualmente, desenganem-se. Todos estes estilos que, ridiculamente, são chamados de minorias culturais (como se soubéssemos definir realmente uma maioria) são a herança de ideais acesos, de movimentos necessários para a evolução social, de pessoas que marcaram a história de tal forma que é quase uma vergonha desconhecermo-las.

Caro leitor, consegue imaginar o que teria sido da Inglaterra se o movimento punk não tivesse aparecido e achincalhado um pouco a sociedade? Consegue conceber a importância, por exemplo, dos Sex Pistols na denúncia do abuso de poder e da imbecilidade de um conservadorismo extremo? Afinal este “gangue do arganel” era nada menos do que um gangue que lutava pelos seus direitos. Era nada menos que um gangue que não tinha restrições quanto a dizer a verdade, quanto a desafiar as ideias sociais vigentes que, não eram mais que uma ilusão bem formulada para conceber um controlo eficaz.

O “gangue do arganel”, não obstante de quem o forme, será sempre um gangue que levanta o punho e diz “não me rendo!” e pergunta “e o povo pá?”! – De certa forma também você, se actualmente se revolta contra um governo precário e uma sociedade decadente, faz parte do gangue do arganel porque acredite, este gangue não tem que ver tanto com o vácuo de uma aparência mas muito mais com o lutar por certos ideais.

Um desses ideais é a liberdade de expressão que ultimamente tem sido extremamente debatido, mas muito raramente compreendido. O que, afinal, não é uma surpresa visto que até na tomada de uma opção pessoal tentam reprimir-nos.

A liberdade de expressão vem sempre com esse problema anexado: existe uma linha ténue entre a mesma e a falta de respeito e os portugueses têm uma competência digna de louvor para baralhar os dois conceitos. Geralmente recordam-se apenas da primeira para tentar escapar da vergonha da segunda ou utilizam a segunda para tentar fugir á verdade que a primeira expõe. – Mas quando exercemos liberdade de expressão devemos saber que esta pressupõe uma justificação factual e objectiva e não uma interpretação dependente de paradigmas educacionais, sociais e até locais. Compreendermos uma característica pessoal como não digna se esta em nada nos prejudica é apenas preconceito gratuito. Tentar ridiculariza-la de modo a que se extinga é apenas opressão do pior tipo- o tipo que nós achamos que não é opressão.

Hoje falo de piercings e tatuagens, do gangue do arganel, mas amanhã poderia falar das “caixas de óculos”, dos “sorrisos metálicos”, das “marias-rapaz”, dos “mariconços”. Como pode ver é uma lista sem fim que termina apenas quando surge alguém que está demasiado satisfeito com a sua vida para a isto dar importância. Mas nós devíamos ser capazes de garantir uma mentalidade mais capaz e liberta de grilhões para as pessoas que não o conseguem fazer. No final regressamos sempre a um conceito base: a educação. A educação aliada á evolução. Mas não apenas a educação que os pais garantem (ou deviam garantir) aos seus filhos, mas também e tão importante quanto a anterior, a educação para um mundo de contextos totalmente contrários entre si, para um mundo de diversidade pessoal e cultural. E essa educação chega apenas quando os nossos horizontes são desafiados a estender-se para lá da redoma que a formatação familiar nos impõe.

Que dizer de um país em que jovens tentam humilhar outros jovens porque estão demasiado reduzidos á sua ideia de correcto, ideia essa que deve reduzir-se á sua insignificância sabendo reconhecê-la antes de mais quando ao lado, no Reino Unido existe uma lei que protege essas “minorias culturais”?

Dizer, principalmente e antes de tudo, que mesmo neste país existem ”gangues do arganel” que se orgulham de o serem. Que existem “caixas de óculos” que se orgulham de o serem. Que existem “sorrisos metálicos” que se orgulham de o serem. – Porque o poder da diferença está aí, nesse pormenor: se realmente vestirmos a nossa diferença com coragem e soubermos quem somos e porquê ninguém nos pode reduzir á ideia que essa pessoa faz de nós mesmos. Seremos sempre mais, muito, muito mais.

Eu exibo as minhas tatuagens com brio do que elas dizem sobre mim. Não tenho vergonha de ter um piercing, ou dois, ou três. Não tenho medo dos olhares jocosos e rio-me dos comentários preconceituosos.

Acima de tudo tenho e terei sempre orgulho em pertencer ao “gangue do arganel” e isso será sempre uma força…nunca uma fraqueza! 

 

Imagem de Amy Winehouse daqui