24 Dezembro 2016      09:55

Está aqui

O BAILE DAS VÉSPERAS

"PARALELO 39N"

Véspera de Natal. Sábado, dia 24 de dezembro de há muitos anos atrás. A noite caía cedo nessas alturas, aliado ao facto de não haver eletricidade e, portanto, sem qualquer luz artificial. Via-se apenas aquilo que a Lua e as estrelas alumiavam, lá de cima do céu, quando este estava aberto. Quando estava nublado ou chovia, era o breu completo e andávamos todos aos pontapés com as pedras e com as moitas na beira dos caminhos de cabra que existiam nessa altura.

Hoje em dia, com a eletricidade, mesmo que a Zundapp ou a Famel não tenham luz, veem-se as luzes lá nos montes e o reflexo do Sol na Lua ajudam-nos e saber qual é o melhor carreiro para ir sem medos. Nos tempos em que os bailes das vésperas eram grandes não havia nada disto. Havia sim uma desculpa para haver um baile nas vésperas de qualquer coisa. Baile nas vésperas de carnaval, baile nas vésperas da páscoa, baile nas vésperas de são João e baile nas vésperas de Natal. E é deste que vos quero falar hoje. Não tenho grande conhecimento do modo de funcionamento, pois não assisti a nenhum daqueles que descreverei. Conheço os de há uns vinte anos. A esses fui a muitos. E como eu, foram tantos e tantos e, devo dizer, felizmente, continuam a ir hoje embora as modas tenham mudado e aquelas que se dançavam há muitos anos, hoje passaram a ser quizombas e kuduros. Há muitas vozes dos outros tempos que não gostam de bailar estas modas.

Daquilo que me contaram, antigamente, o baile era o acontecimento social. Era a altura em que se mostravam as melhores roupas e os melhores sapatos. Era o momento em que as moças viam os moços e os moços viam as moças. Olhavam-nas fixamente, tentando infrutiferamente, escapar ao olhar inquisidor dos velhos que também iam ao baile e que também olhavam para elas e para eles e confidenciavam entre si se aquele era de boas famílias, se já tinha ido à tropa e se ganhava bom dinheiro. A meio do baile, lá vinha o putativo genro oferecer um cigarro de enrolar ao putativo sogro. Se aquilo corresse bem, até podia dançar uma moda com a moça. Se corresse mal, esqueça lá isso e vá até ao outro canto porque daquele patriarca não leva nada.

A tarde começava a cair aí às cinco horas. A geada que, de manhã, com os primeiros raios de sol tinha desaparecido, voltava e punha os véus e as grinaldas nas ervas, nas estevas e nas couves das hortas. Fazia o dente bater e as unhas dos pés sentirem frio tal era o briol. Não nevava, mas também não fazia falta porque o frio era pior. De neve, só se lembravam do nevão de 1945 - fevereiro. Nem as bestas queriam sair à rua, tal era o medo. Era conhecido como o ano da neve e nesse ano, a conversa do baile das vésperas não foi sobre outro assunto. Ao menos assim, os velhos estavam distraídos e os moços e as moças podiam namorar à vontade, pensavam os mais novos.

Preparava-se nesse dia, o baile, depois de ceado o jantar de couve com a carne de porco, mais ossos do que carne, salgada, um copinho de vinho cimentado com dois de aguardente de medronho para aquecer o estômago para o caminho a pé não custar tanto, metiam-se todos a caminho. Usavam o carreiro feitos pelos machos e pelas mulas que faziam o caminho entre o monte mais longe e o monte mais perto. Velhos e novos lá se metiam na vereda e dirigiam-se para o monte do Ti João, onde se faziam os bailes na arramada. Tocava nesse baile um tocador contratado, vindo das Sarnadas. Tinha um acordeão daqueles bons e tocava umas modas como ninguém. Na pista, o pó levantava até acima do joelho e não havia ninguém que se queixasse. Tudo queria era dançar e, os mais novos namorar, já que nos outros dias isso não era tarefa fácil. Nem os afazeres nem os velhos deixavam. Era tudo controlado, ou pelo menos assim se pensava.

Para o baile, os moços, os com mais sorte, levavam as bicicletas a motor, as Zundapp, as Famel, mas todos vestiam as melhores calças, as botas cardeadas, camisa e casaco de flanela, calça de fazenda e brilhantina para não se mexer um cabelo mais rebelde. Elas, as moças, enchiam-se de coragem e vestiam saia pregueada, aos quadradinhos, meia até ao joelho, sapatinho fino mas capaz de danças na pista de terra batida e um casaco de chita. Era o dia do baile das vésperas.

O tocador não se cansava e tocava até de manhã, os velhos e os moços bailavam umas modas, bebiam umas aguardentes e outras bebidas, as velhotas olhavam pelas moças e faziam renda e malha, entre uma moda e outra e todos dançavam e punham a conversa em dia. Às tantas lá despareciam uma moça e um moço, indo namorar para atrás das moitas, protegidos pelos colegas e pelas colegas da mesma idade.

Já de madrugada, levantado o Sol, voltavam a casa aqueles que não se tinham deitado. Não havia ainda cansaço e a vereda que os tinha levado era a mesma que os tinha trazido. Uns levavam negócios feitos, bestas compradas, gado vendido, outras levavam camisas de malha quase feitas e naperons já acabados. Elas, muitas das moças mais novas, levavam segredos que partilhavam com eles e com as amigas mas todos se sentiam realizados e transportavam, junto com estas coisas todas, as modas na cabeça e no ouvido, até ao próximo baile. 

 

Imagem de vileladotamega.blogspot.pt