8 Outubro 2016      03:38

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NÚMEROS PRIMOS

"PARALELO 39N"

Eram dois primos. O Zé Sete e o António Onze. Eram primos por parte da mãe e tinham nascido na mesma aldeia do distrito de Beja. Moravam na mesma rua, com um intervalo de três casas entre eles. Eram, além de primos, muito amigos e tinham, desde que nasceram praticamente, brincado sempre juntos e passado tempos e tempos fazendo corridas de carrinhos de rolamentos na eira perto da aldeia. Um, como dizia o sobrenome, tinha sete anos e o outro onze. Isto para não divergir do que até aqui se tem dito das famílias.

Apesar de andarem na mesma escola, andavam em classes diferentes e em anos separados. Nem um nem outro são bons em línguas. Excelentes alunos em matemática. Números. Primos. Quando um nasceu já o outro se dividia por dois e só por isso se conheciam e tinham essa particularidade, além dos laços familiares, além do seu sangue. Era a matemática do sangue e o sangue da matemática. Nada mais havia além da família e os seus pais, habitante desde sempre desta aldeia de Beja, Sete de seu nome também, contavam pelos dedos aqueles ligados à gente que tinham partido da aldeia em busca de outras contas. Não era difícil. Nada é difícil no mundo dos números e da matemática da vida e das coisas. Há problemas que surgem todos os dias. Todavia, só pelo seu surgimento se resolvem esses mesmos problemas, esses e todos os da vida. Os problemas criam soluções, que só surgem em consequência do aparecimento dos primeiros.

Como a família dos números tão bem sabia, tudo se soma, tudo se subtrai, multiplica e divide. Os avós já foram novos e as crianças serão velhos, passaram por todas as fases das contas que se subtraem e adicionam aos dias e aos anos. Na sua jovem idade, sete de sete, habitante da Sete, e Onze, filho de Onze, primo de sete, brincavam na eira, em carrinhos de rolamentos e contando as sementes perdidas na debulha do trigo. A Escola nos meses de verão era coisa do passado e do futuro distante, pelo menos até ao fim de agosto. Nessa altura não se pensava nisso. Pensava-se só nas contas de cabeça de quem conta histórias, joga ao jogo do galo, salta à macaca, joga ao berlinde e faz corridas de fórmula 1. Não se pensava em matemática, pensava-se só nos jogos e nas brincadeiras e ao fim do dia, depois do ralhete das mães, um banho afugentava a carga de pó angariada durante o dia. Subtraíam-se uns calções empoeirados, adicionavam-se uns baldes de água, sabão azul e branco, umas toalhas brancas que, mesmo depois do duche, ficariam amarelas mas já não castanhas. E nisto se faziam as matemáticas dos dias, até ao fim do verão. Cada dia tem vinte e quatro horas, cada hora tem sessenta minuto, cada minuto tem sessenta segundos e por aí fora. Os primos não se dividiam a não ser por se e por um. Só a companhia de brincarem, de crescerem juntos na família e na amizade que os liga, quase como irmãos.

Um dia serão catorze e vinte e dois. Um dia serão vinte e um e trinta e três. Um dia deixarão de existir nas casas onde nasceram e se fizeram números grandes. Passarão a viver em outras casas, decimais, centésimas, frações. As probabilidades de se reencontrarem nos dias ou nos anos será menor. Ficarão distantes dos carrinhos de rolamentos e, na família dos números serão os que abalaram da aldeia e voltaram uns dias, poucos, no verão.

Os primos serão sempre os primos, em números divisíveis por si e por um.

Imagem de capa daqui.