27 Dezembro 2015      10:33

Está aqui

NASCIMENTO |

"PARALELO 9 S"

"O dia pertencia ao último mês do ano, esse mês em que começa o Inverno e se sucedem geadas e frio, em que as lareiras aquecem as casas e as chaminés emanam fumo e enchem os céus, confundindo-se com as nuvens. Parece que poderia ter sido hoje, neste mesmo dia em que se conta este pedaço de história, mas não… aconteceu há muito tempo, tanto tempo quanto as palavras que contam histórias.

Estas coisas, diz a sabedoria popular, acontecem quando têm de acontecer e esse era o dia de acontecer. Já assim era há mais de dois mil anos. Aliás, sempre assim foi. No meio do Alentejo perdido, coberto de geada, escondido pelo nevoeiro, havia um monte e, nesse monte, Maria, mulher simples, destemida, trabalhadora do campo, já nos seus quarenta anos, era, dizia-se, uma mulher moldada pelas amarguras da vida que não casaria. Estava destinada a tomar conta dos irmãos e dos pais, consumidos já pelo passar dos anos. Não sabia bem porquê, mas andava animada estes dias. Todos já tinham estranhado a sua alegria, tão invulgar no seu ser calado e acabrunhado. Parecia que adivinhava alguma coisa, algum acontecimento que lhe mudaria a vida. Até aí, Maria pensava ficar solteira. Até aí, entretinha-se a ajudar os pais e os irmãos na lida da casa. Moravam todos ali perto de uma aldeia, num monte isolado do Alentejo mais profundo, das profundidades de baixo. Os pressentimentos de Maria tinham razão de ser.

Um dia, apareceu um estranho à aldeia. Homem alto, acabrunhado, enrolado na sua essência, metido nas suas ideias. Nunca no Alentejo tinham visto aquele homem. Tinha vindo para o emprego sazonal da azeitona ali para as zonas de Safara, junto com tantos outros homens que trabalharam, receberam as jornas e partiram. Ele ficara. Sozinho. Um dia, num baile da aldeia, abrilhantado pelo famoso acordeonista que animava todos os bailes, os olhos do estranho cruzaram-se com os de Maria. José era seu nome. Tinha muitos mais anos do que Maria. Ela, tímida, estava sentada com os seus pais num pequeno banco, daqueles que se dispunham nas quatros paredes, olhava como quem esperava quem a chamasse para dançar. Ainda não tinha acontecido nessa noite. A mãe sentava-se protetora, tão protetora como o seu pai. Era a sua menina e dela os galifões não haviam de abusar. A par dos progenitores, os irmãos, uns mais velhos e outros mais novos. Dois solteiros e um casado seguravam o balcão e bebiam minis. Olhavam para todos os lados e vigiavam a sala. Os dois solteiros olhavam simultaneamente os lados para ver se estava alguma moça solteira que pudesse dar uns passos de dança ou, quem sabe, arrojadamente, dançar mais do que duas modas.

José, velho, estranho na terra. José, o esguio, alcunha já adquirida pelo feitio do seu corpo, pagou o preço da entrada. As mulheres não pagavam. Quando entrou, sozinho, olhou toda a volta e todos quantos estavam na sala o olharam. Juntou-se a todos os homens solteiros que estavam a segurar o balcão de madeira. Algumas mulheres dançavam umas com as outras por falta de par. Os homens tinham, parecia, dois pés de chumbo. José, o esguio, fixou os olhos em Maria, sentada ao lado de sua mãe que estava a fazer renda. Já tinha um naperon quase terminado. Temeroso, aproximou-se da rapariga que se sentava só e que o seu coração dizia que era a mulher que seria a sua companheira para a vida, aquela que seria a sua confidente, sempre a mesma que os seus olhos encontrariam ao acordar até que não acordasse mais.

Pediu autorização aos pais para a dança e, concedida, levou Maria para dançar. Dançaram o resto da noite e apaixonaram-se. A partir daí, todos os dias, José visitava a sua futura mulher e Maria alegrava-se com as visitas de seu futuro marido. Ao fim de um ano, casaram-se na igreja da aldeia, uma semana depois do casamento pelo registo civil. Tiveram direito a uma casa dada pelos pais dela. Um monte abandonado que, com a ajuda dos irmãos e dos vizinhos, foi reconstruído, passou a ser o seu lar. O tempo passava e ia passando. Desenrolaram-se alguns anos e parecia que ambos eram secos, que não nasceria fruto dos dois. Não tinham já esperança de nascer deles rebento. Ao contrário das árvores e aquilo que semeavam na horta, nada germinava.

Em abril, quando a Primavera já tinha rompido nos montes, Maria sentiu que gerava vida. O mundo inteiro parecia nascer nela. Naquele momento, sentiu algo dentro de si. José sentiu também o que Maria sentia. Em breve, seriam três e todo o mundo em volta. O tempo foi passando e as semanas de espera esgotavam-se. Mais dia, menos dia, nasceria quele ou aquela que os completaria. Já temporão, este filho tinha sido desejado. Tão desejado quanto o casamento que, esse também já veio tarde. Vinha quando quase abandonavam a esperança.

Era, de novo, uma manhã de dezembro, fria, no ribeiro que corria meio congelado, no monte, ao pé da aldeia, perto da vila deste Alentejo que era todo o mundo dos dois. As contrações começaram e Maria gritou pelo nome de José que, ao ouvir as dores, correu da horta onde se ocupava a colher as couves para celebrar o nascimento de Jesus. É hoje, pensou. É hoje. Nasce num dia abençoado. E correu para o monte, indo chamar a vizinha que era parteira e já fizera nascer tantos bebés, mas a vizinha tida ido visitar os filhos à vila e não estava. José chorou de desespero e correu para casa, ao socorro de Maria que se contorcia com dores na cama. Ia nascer em casa a sua menina.

Em casa, na mesma cama onde todos os dias adormecia e acordava, com a ajuda de José atormentado pelo medo, Maria gritou tanto que se ouviu em toda a freguesia. Os pais acorreram em auxílio. Impávido, José seguiu as ordens da mulher e Maria gritou, sofreu e deu vida. Já na noite desse dia, nas mãos de José, nasceu Maria, filha de Maria e de José. Nasceu robusta, saudável e chorou quando nasceu, como se as dores da mãe fosses também suas. "

 

Imagem de http://www.galenoalvarenga.com.br/…/primeiros-contatos-bebe…