26 Novembro 2016      10:22

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MÃO FURADA

"PARALELO 39N"

As noites frias de que vos falei na semana passada, depois das papas de milho, barriga já cheia, bochechas rosadas e uma vontade de dormir imensa, levavam os pequenos as barrigas cheias para a cama e deitavam-se debaixo dos lençóis e das mantas quentinhas que afugentavam, ainda que pouco no início, o frio que rodeava toda a casa e conseguia entrar pelas brechas da janela e por debaixo das portas.

As almofadas acomodavam as cabeças cansadas e sonolentas. Deitados, com os pijaminhas vestidos, banho tomado no alguidar pois a água quente era aquecida ao lume, adormeciam vezes e vezes sem conta. Isto é, acordavam e voltavam a adormecer. Adormeciam e voltavam a acordar. Os meninos lembravam-se, durante os momentos em que fechavam os olhos do dia que tinham tido. Nesses dias não havia Escola. Passavam o dia, se não chovera, a brincar nos montes e passavam os serões dentro de casa, sem fazer grandes disparates.

Eram meninos e tinham todos os sonhos despertos dentro deles. Queriam ser aquelas coisas que viam nos livros e nas revistas que chegavam até eles. Queriam ser os super-heróis que viam na televisão. E, quando ainda acordados, ao chegar à cama, imaginavam-se nesses papéis e deixavam-se navegar ao longo de todas as aventuras noutros mundos que não os seus. Neste, os super-heróis que eram usavam espadas feitas de urze e de esteva, espingardas de aloendro e lutavam contra os sobreiros e as azinheiras que abanavam os braços conforme lhes dava o vento. Em alturas mais calmas, quando o mal não ameaçava o seu mundo, iam pelos montes em busca de pucarinhas ou míscaros como lhes chamam outros. Eram felizes com o muito que, se possa dizer pouco, tinham.

Mas voltemos à noite, ao frio, à cama e às barrigas cheias. Os meninos iam dormir e eram avisados pelos pais, avós e demais familiares, vezes sem conta, cuidado com o pesadelo da mão furada. Não se deixem apanhar pelo pesadelo que vem disfarçado de fradinho com barrete vermelho na cabeça e, em vez de vos conceder favores, engana-vos e prega-vos partidas. Não se deixem apanhar pelo fradinho, pelo pesadelo da mão-furada. Ele entra pelo buraco da fechadura e senta-se no vosso peito. Ele rouba-vos as vontades e os sonhos. Deixam de conseguir respirar nessa noite tão fria e é como se uma mão-furada vos pressionasse o peito de maneira tão forte. De nada vos servirão as espadas de urze e estevas nem vos valerá a espingarda de aloendro. O fradinho é manhoso e entra pela fechadura do quarto. Nunca durmam de barriga para cima, diziam os pais, os avós e demais familiares. E os meninos ouviam e tinham medo. Tinham medo de deixar de respirar e dormiam sempre como eram avisados.

As noites pareciam e eram, de facto, mais longas. Não raras vezes, os meninos choravam ao acordar, quando se esqueciam de dormir na forma e posição indicada e eram atacados, à revelia e manhosamente pelo pesadelo da mão-furada. As camas acomodavam-se ao jeito do seu corpo e ficavam os moldes nos colchões. As mães acudiam ao choro a meio da noite e sossegavam os super-heróis. O manhoso do fradinho já foi embora e os sonhos já podem ser bons. Até que o dia regresse, os meninos podem voltar ao sono, sossegados pelo carinho maternal.

Não é tão escura e fria a noite que consiga ocultar a luz que sai da aura e dos olhos maternais e aquece os meninos chorosos e apanhados desprevenidos. Ficam a ser embalados até que adormeçam de novo. Quando acordarem, já não se lembrarão de muito do que se passou nem terão imagem de quem é o fradinho da mão furada pois as mães escondem o barrete vermelho esquecido, deixado atrás no chão, quando o malvado do duende fugiu à pressa do quarto dos meninos. 

 

Fotografia de quimaterapia.blogspot.pt