26 Março 2016      10:36

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AS LÂMINAS DA BARBEARIA DA VILA

"PARALELO 39N"

A vila não era muito grande. Ao todo, devia ter aí umas 600 pessoas a viver lá em permanência. Havia muitas casas vazias, de pessoas que morreram, casas sozinhas deixadas por pessoas que foram viver para outras paragens e casas quase a cair, de pessoas que se esqueceram que, naquele lugar, havia uma casa ou mesmo de pessoas que já não tinham ninguém que se lembrasse que lá havia uma casa.

A vila minguava a cada ano e o cemitério, esse, enchia-se de lápides de mármore e granito e, à passagem das semanas e dos meses, nem a força das lágrimas tornava a terra tão forte que evitasse que fossem cavadas mais sepulturas e se aumentasse o número de covas. Era assim a vida e a morte na vila. As casas, brancas, vistas de lado e acastanhadas, vistas de cima, pelas telhas antigas e já cobertas de musgo das chuvas, estendiam-se em redor de uma praça central. Nessa praça central, meia dúzia de bancos e outras tantas árvores a fazer sombra. Era uma praça que não seria assim por muito mais tempo. Planeava-se uma intervenção em grande escala, em breve. Preservaria sempre a memória dos que lá se sentaram, dos que a viram e dos que contaram que lá se sentaram e que a viram.

Algumas ruas abaixo, caminhando por uma calçada tosca e apaixonante, por isso mesmo, feita de pequenas pedras de xisto, que não evoluiu tanto como aconteceu com a passagem das botas para os cascos dos cavalos, das rodas da carroça para as da charrete e destas para os pneus, feitos de materiais modernos e bem mais confortáveis, havia uma barbearia. Chamava-se Barbearia Moderna.

Numa esquina tão antiga quanto a construção da vila, era das primeiras casas que tinha sido erguida, pedra a pedra. Estuque de cal em cima e cimento em zonas que iam caindo com o passar das estações do ano. A porta estava sempre aberta, das nove da manhã às seis da tarde. Lá dentro, sentava-se Manuel, o barbeiro, numa cadeira daquelas das barbearias da época, metálica, em tom de esmalte branco sujo, e acolchoada de pele de tonalidade verde alface. Havia duas. Manuel tinha orgulho naquelas duas cadeiras e era Manuel que nos contava, a cada corte de cabelo, a história de seu avô e de seu pai bem como daquela barbearia que tinha estado ali anos e anos. Eram anos e anos e já ninguém se lembrava quando tinha aberto.

Toda a gente se lembrava que sempre tinha havido ali uma barbearia e que Manuel já era dono dela, mesmo quando o seu pai ainda era vivo. Talvez tivesse sido mesmo do seu avô. As cadeiras olhavam-se aos espelhos, grandes e opulentas, espelhos já consumidos pelo passar do tempo, também. Notava-se nos seus cantos, já corroídos que deixavam ver, à transparência, a parede rachada em pedaços. Manuel já tinha pensado mudá-los e ia fazer isso, um dia, quando um deles se partisse. Do mau estado dos espelhos queixava-se a sua mulher que todos os dias pensava nisso, congeminando, mesmo, simular um acidente, partindo-os e, assim, forçar a sua renovação.

No canto do outro lado, ao fundo de quatro cadeiras seguidas, encostadas à parede, em platex e enferrujadas nas partes de metal, estava uma pia, onde a torneira deixava pingar gotas atrás de gotas que, além de deixarem um rasto amarelado do calcário que transportavam, lembravam uma clepsidra num tempo que passava, eterno e lento, teimoso e sonolento. Esse tempo notava-se melhor nos cabelos brancos que caíam no chão da barbearia, após cada corte. Caíam no chão feito de mosaicos alaranjados e de pedaços de vidro verde incrustado. Eram recolhidos, diariamente, pela mulher de Manuel com uma pá e vassoura comprada na feira do ano anterior.

Em frente ao vidro, havia uma prateleira de madeira antiga, mas envernizada com precisão, onde se dispunham todos os instrumentos. Começando pelo lado direito, as navalhas e as lâminas, tão cuidadas e afiadas como as línguas da vila. Eram, para o barbeiro Manuel, tratadas com toda a afeição e iam, dia após dia, cumprindo o seu propósito. A cada utilização construíam uma história. Raramente faziam sangue e raramente deixavam a barba mal feita. Nisso, e em tudo, Manuel era um perfeccionista.

Em seguida, os outros instrumentos: as tesouras, as máquinas manuais de cortar o cabelo, a bacia de cobre, o sabão e o pincel do barbeiro. Ao fundo, o pó de talco. Tudo se reunia ali e tudo se começava e acabava ali. A vida e a morte na vila sentavam-se na cadeira e eram moldadas na ponta das lâminas das navalhas e nos bicos das tesouras.

 

 

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