2 Abril 2016      11:37

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GOLPE NUNCA MAIS

"MENOS ESTRANGEIRO"

Em tempos de turbulência como o que vive o Brasil já há alguns anos, cujo ápice ocorre desde a deflagração do processo de impeachment contra a Presidenta Dilma, o desafio ao exercício da cidadania consiste em desfazermos os nós que o preconceito e a má informação podem atar às inteligências desavisadas e assumirmos posições, sem incorrermos em injustiças e sem pormos em causa os valores e os princípios que norteiam a nossa consciência.

Este desafio é maior no caso brasileiro, devido ao trabalho coordenado que as elites econômicas conseguem operar através dos grandes veículos de comunicação. Estes, diariamente, reservam boa parte de sua programação à veiculação da sua narrativa acerca dos fatos políticos nacionais. Posso definir narrativa neste caso como uma versão da História que, ao privilegiar alguns fatos e esconder outros, visa incutir no destinatário da comunicação aquilo que o comunicador quer que seja considerado verdade.

Obviamente, todos os grupos em disputa tendem a fazer o mesmo. O que os difere é o poder de alcance de suas respetivas ‘histórias’ e o tipo de impacto que elas são capazes de criar na população de um determinado território. Mais do que fazer-nos escolher entre uns e outros, as novas tecnologias têm permitido a multiplicação de narrativas. O cidadão mais atento utiliza-as no sentido de formar criticamente a sua opinião e de compartilhá-la com familiares e amigos.

À semelhança do que também ocorre em alguns países europeus, os media na América Latina estão historicamente concentrados nas mãos de poucos grupos econômicos.  No Brasil, as principais redes de televisão, de rádio e de imprensa escrita são de propriedade de menos de dez famílias. Todas elas profundamente enlaçadas a elites econômicas dos mais variados setores, em especial do financeiro. A família Marinho, proprietária do Grupo Globo, cuja fortuna ultrapassa os 10 mil milhões de euros em valores de hoje, construiu seu império de comunicação durante a ditadura, ajudando sempre a prosperar negócios escusos entre empresários e os sucessivos governos militares. Ainda que se definam liberais, a Globo e seus parceiros não sobrevivem sem o Estado. Para voltarem a controlá-lo são capazes de tudo.

Ao observarmos os editoriais do jornal O Globo, ou os scripts do Jornal Nacional, transmitido pela TV Globo à hora do jantar, percebemos que a adesão dos Marinho à tentativa de golpe contra a presidenta Dilma apresenta as mesmas facetas do seu trabalho em prol da deposição do presidente João Goulart e da instalação do golpe militar, em 1964. Isto demonstra que o Brasil ainda não superou as contradições que facilitam a eclosão de governos ilegítimos, nascidos ao revés das constituições vigentes. Outra coincidência é que estes estratagemas golpistas ocorrem sempre no ocaso de governos de base popular, responsáveis por avanços na correção das desigualdades sociais.

Sendo assim, este é o pano de fundo da atual situação brasileira: corporações econômicas interessadas na exploração de riquezas naturais e na especulação financeira usam partidos recheados de políticos corruptos para tentarem a deposição da presidenta Dilma, com amplo respaldo dos media hegemônicos, especialmente porque a mandatária está ligada a um projeto governativo promotor da redução de desigualdades sociais e, portanto, mais devedora dos movimentos populares do que aos setores econômicos.  

Ainda que a sua gestão mereça muitas críticas, não se deve deixar de mencionar que a sua governabilidade tem sido praticamente inviabilizada por setores sombrios acampados no interior da República. As “crises” política e econômica dos últimos anos foram agravadas pela chantagem do Poder Legislativo, que se recusa a votar matérias importantes ao Executivo. Setores do Judiciário também concorrem para o agravamento daquelas “crises”, na medida em que, no rastro das valiosas investigações de casos de corrupção, impetram ordens judiciais que paralisam empresas estratégicas à geração de trabalho e ao aprimoramento infraestrutural do país.

Tais setores tornaram-se mais visíveis com a tentativa de prisão do ex-presidente Lula da Silva, no dia 04 de março, e com a reunião que definiu a retirada do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) da base aliada ao governo federal, no último dia 29 de março. O que mais avilta é a perceção de que, na linha operacional do golpe, estão os políticos comprovadamente mais corruptos da atualidade política brasileira. Eles são, apesar de tudo, poderosos, porque representam lobbies de grandes conglomerados econômicos e controlam os chamados “currais eleitorais”, onde vota grande parte dos eleitores, principalmente no interior do país.

“O que mantem Dilma Rousseff na presidência?”, você poderia me perguntar. Eu argumento que há, entre outros, dois fatores a concorrerem para impedir a deposição da presidenta. Ambos ajudam a nos posicionarmos diante do nefasto ataque mediático que atinge a sensibilidade dos brasileiros e brasileiras. São eles: a irrefutável honradez de Dilma e, paralelamente, a unificação dos movimentos populares em torno da defesa das regras da democracia brasileira.

A maioria destes movimentos é crítica à política econômica do governo federal, porém exigem o respeito aos resultados eleitorais e a realização das eleições gerais no prazo previsto, qual seja, outubro de 2018. Antes de ser um bastião de defesa da Presidenta ou do seu partido, o dos Trabalhadores (PT), trata-se de uma brigada popular em nome da legalidade e do aprimoramento das instituições democráticas, sem atropelamento das regras em vigor.

Este movimento, que surpreende pela adesão e consistência, faz-nos constatar que, por um lado, as tais elites econômicas e seus veículos de comunicação são capazes dos mais degradantes ardis para fazerem sobrepor seus interesses ante os interesses públicos, criando inclusive uma horda de protofascistas mal informados e odientos, que nos tem envergonhado com sua extrema ignorância. As redes sociais, por sua vez, conseguem fazer circular um conjunto de outras narrativas, as quais promovem a aglutinação de movimentos sociais díspares e a criação de consensos à esquerda. O mais desejável é que esta unificação possa influenciar as eleições municipais deste ano (o que, para já, parece tarde demais) e as de 2018, quando o Brasil será convidado a repensar a composição do Congresso Nacional, hoje marcado pela prevalência das bancadas do BBB (boi, bala e bíblia).

Trata-se de um trabalho hercúleo, que exigirá disposição ao diálogo e composição de forças entre os movimentos “vermelhos”, que vêm ocupado as ruas brasileiras, como o fizeram ontem, dia 31 de março. Caso seja levado adiante, além de limpar o congresso e realinhar a política partidária brasileira, esta força popular pode ser capaz de um outro feito: enfraquecer o poder político das elites econômicas, o que levaria ao aprofundamento das conquistas sociais dos últimos anos. O caminho é longo, cheio de curvas; sua travessia exige determinação, porém valerá a pena.

Por via deste esforço, o Brasil passará a uma nova fase de sua História, na qual um Estado forte, voltado aos menos favorecidos, poderá equilibrar uma sociedade extremamente desigual, herdeira de um sistema colonial extractivista, pai e mãe de poderosas corporações e oligarquias. Estas, além de anacrônicas, mostram-se sempre perversamente dispostas a atear fogo à República, a despeito da vontade popular que, pela internet, encontrou meios de se organizar e de fazer-se ouvir ao dizer, em alto e bom som: “Golpe Nunca Mais”. 

 

FOTOGRAFIA de Ricardo Stuckert (com drone): São Paulo, Praça da Sé; cerca de 40 mil pessoas mobilizaram-se em defesa da democracia, na noite do dia 31 de março. Calcula-se que 600 mil foram às ruas, em 25 cidades, no Brasil e no exterior.