21 Janeiro 2017      14:44

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AS FIGUEIRAS DO BARLAVENTO

"PARALELO 39N"

Antonieta deitou-se cedinho nesse dia. Mal o sol escapuliu atrás do monte e das azinheiras, comeu as sopas de pão junto com a família e pôs-se debaixo das mantas que, nessa altura do ano eram poucas pois os dias de calor já tinham chegado e não dava jeito nenhum dormir com mantas pesadas e quentes em cima, mais a camisa de dormir, num colchão de barbas de milho. Bem, com mais ou menos calor lá adormeceu tendo sempre na cabeça a manhã do dia a seguir. Normalmente ficaria mais tempo sentada na rua à conversa com as manas e com as vizinhas que por ali apareciam para regatear um bocado e tecer longos considerandos sobre as vidas alheias e, às vezes, as suas também.

O galo cantou cedinho como era hábito. O cantar do bicho denunciou que era hora de sair da cama e começar a arrumar a trouxa para descer os montes em direção ao mar. O objetivo, claro, não seria a praia. Era, antes, uma herdade lá perto onde iria passar os dois meses que se avizinhavam, na apanha dos figos, da amêndoa e da alfarroba do Algarve. Nessa altura, o caminho até ao Barlavento e ao Sotavento eram esguios e longos. Não havia as estradas que há hoje em dia e as pessoas não se deslocavam em quatro rodas. Antes, em quatro patas, revezando entre duas e quatro. Umas vezes eram quatro no chão, outras vezes seis. E lá iriam todos contentes. Iam em grupo e logo isso multiplicava o número de patas. Mas isso não interessa agora.

Tudo levantado e desperto. Cara lavada na bacia de esmalte que ficava à porta, numa daquelas que o sabão azul se punha por baixo, tinham um espelho mais ou menos à altura da cara e um lugar para pendurar a toalha. Antonieta lavou a cara, tirando as ramelas que se acumularam nos olhos durante a noite e voltou para dentro de casa. Lá dentro, a mãe preparara fatias douradas. Cortara grandes fatias de pão, embebera-as em ovos batidos e fritara-as em óleo, passando-as depois por açúcar em canela. O cheiro a fritos e a café que também tinha sido aquecido numa cafeteira ao lume, filtrado, deixando atrás as borras, dava vontade de não partir e se ausentar por dois meses, mas Antonieta sabia que tinha de ser. Sabia-o ela e as vizinhas que a acompanhavam. Seria o pai de Antonieta que as havia de levar à estação e depois dali apanhavam a automotora até perto do destino final. Lá alguém as esperava e levava até à herdade.

Conheciam bem os recantos onde iam dormir e sabiam que árvores iam varejar para as amêndoas e que figueiras iam despojar de fruto. O trabalho era de sol a sol. Não pagava grande coisa, mas era o que havia. Nas terras encarnadas do Algarve, no Barlavento quente e com tojos entre as árvores de frutos secos e dos que haviam de secar, as moças iam passar o verão na apanha. Cantariam para tornar os dias mais alegres. Fariam piadas para se rirem e esqueceram o suor que escorria debaixo dos lenços que, por sua vez estavam debaixo dos chapéus. Era assim nos meses de Verão. Tinham um dia de folga por semana e nesse dia experimentavam ir molhar os pés ao mar. Tinham medo dele. Esse grande penico cheio de água salgada que não servia para lavar a roupa mas que, não pensavam, uns anos depois seria a atração de tantos milhares nestes meses. Tudo esqueceria os figos, as amêndoas e as alfarrobas. As árvores, bem mais anciãs, continuariam nos sítios onde estavam, agora com mais tojos à volta e com a terra ainda mais seca do que antes fora mas os homens não lhes olhariam da mesma maneira nem se veriam as moças de volta das árvores varejando o fruto.

O mundo é como uma roda que vai rodando, umas vezes mais devagar e outras mais depressa e não vale a pena querer olhar atrás e tentar forçar o que já passou. O melhor segredo seria, neste caso, encontrar no presente formas de reviver o passar não o vivendo. As moças não se preocupavam muito com isso nesses dias. Se alguém lhes dissesse que, no futuro, a internet contaria estas histórias, não acreditariam. Acreditavam no que viam ali e naquele momento e isso era uma figueira de figos de São João e outra de figos brancos, três amendoeiras perto uma da outra e a grande e antiga alfarrobeira que lhes dava sobra na hora de comer uma bucha. Lá longe, as casotas, na parte de trás da herdade, onde ficavam alojadas.

Eram dois meses no ano que se repetiriam até à idade adulta em que o namorico havia de dar certo, casariam e deixavam de ir à apanha do figo e da amêndoa nesses meses de Verão. Um dia passariam pelo sítio onde tinham estado e diriam, antigamente isto não era nada assim. Lembro-me tão bem dos dias em que andei aqui apanhando figos, amêndoas e alfarrobas e agora está tudo cheio de prédios… ainda assim, quem havia de dizer. Ninguém diria como não se dirá nada sobre o futuro. Era assim o Alentejo e o Algarve. Daqui a muitos anos, alguém dira a mesma coisa dos dias de hoje. Ainda assim, convém contar o meio da história.

 

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