22 Julho 2016      10:34

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EM PORTUGUÊS É MELHOR

"MENOS ESTRANGEIRO"

Eu estou ‘uma pilha’, caro amigo e cara amiga leitores. Enquanto você lê este texto, eu já terei apresentado a minha primeira comunicação acadêmica em inglês, durante a reunião bianual da Associal de Antropólogos Europeus (EASA), em Milão, Itália.

Costumo ser uma pessoa tímida, em face de situações inéditas. Ademais, não há, para mim, qualquer comparação entre o uso da minha (nossa) língua nativa e uma estrangeira. Mesmo quando eu estiver absolutamente fluente em outras, é certo que eu não conseguirei expressar a complexidade dos meus pensamentos e sentimentos numa língua que não seja a portuguesa.

Há, ainda, um motivo político para a minha relutância: evitar a assunção da língua inglesa como universal é um ato de desobediência necessário, como o são as insurgências contra os imperialismos. Trata-se de um manifesto simbólico que tende a considerar nocivo todo e qualquer reducionismo, em especial no campo da linguagem. Eu, como brasileiro, fui educado numa língua cheia de inovações trazidas das matrizes indígenas e africanas. Por que não ir cada vez mais longe e fundo nesta aventura semântica?

Repare, eu me refiro a uma conceção que oblitera da fala ou da escrita, a partir de critérios geopolíticos, aquilo que elas têm de mais genuíno e impressionante: a possibilidade de revelar uma determinada intimidade, trazendo com esta expressão as memórias mais fundas, reproduzidas pelo uso de determinada língua. Por exemplo, as memórias das paisagens que nos marcaram a infância.

Na minha terra natal havia uma árvore frutífera que, ao que parece, foi extinta. Chamava-se ingazeiro. O ingá é uma vargem com cerca de quatro caroços recobertos com uma capa branca, doce, húmida e macia, muito parecida com o algodão. Comer ingá à beira do Rio Manjerona era uma das coisas mais divertidas da minha meninice. Sem falar nos molhos de ingás que comprávamos na feira e que nos enchiam o paladar de prazer, entre sorrisos, brincadeiras, estórias e afagos.

Obviamente, minha apresentação de hoje não foi sobre o ingazeiro, ainda bem. Porque eu jamais conseguiria traduzir o ar do sertão com a riqueza de detalhes que saltam destas lembranças tão remotas. De facto, para o fazer (e algum dia o farei) eu talvez tivesse que transformar a língua portuguesa, adaptá-la à minha memória ou ao sentido que eu quisesse dar a ela.

Este é o trabalho do escritor: transformar a sua língua. Lembro-me de Guimarães Rosa, o ficcionista brasileiro que, em seus livros, representa a fala do sertanejo, cheia de neologismos e de maneirismos. Ler Guimarães Rosa é quase como se perder num labirinto esplendoroso de sensações e de imagens descritas numa panóplia de palavras que, eu disse quase, quase não parecem existir na língua portuguesa.

Lembro-me também de José Saramago e do seu desafio constante ao ritmo musical e calmo da portugalidade, ou de Clarice Lispector e suas incursões deliciosamente claustrofóbicas dentro de si mesma. Ou do poeta Manoel de Barros com seus versos sabiamente pueris e originais. Posso supor que, dificilmente, estes escritores teriam sido como foram, caso escrevessem em inglês, ou mesmo em qualquer outra língua latina. Isto, porque o que falamos é também o que lembramos e sentimos. Portanto, é preciso ser leal à língua materna. Amá-la e cultiva-la.

Eu, no entanto, terei sido há pouco obrigado a dizer o que tenho a dizer em inglês. Compreendo que não se poderia exigir traduções simultâneas em todos os eventos acadêmicos, porém, por trás do sotaque carregado do belga ou do italiano vê-se logo que muita informação foi perdida.

A verdade é que não há como eu tornar um texto escrito em inglês mais interessante do que aqueles que escrevo em português. Faltarão as expressões idiomáticas e os sentidos que acompanham a intenção implícita de cada frase. Faltarão a piada ou a comoção. Faltará sempre um pouco de mim e, no caso da comunicação de hoje, terá faltado um pouco de Évora também, uma vez que terá sido sobre Évora a minha fala. Portanto, serão, espero, exceções as vezes como esta em que eu terei que escrever em outra língua que não a minha (nossa).

Hoje, espero não ter sido mal-entendido pela audiência ou não ter deixado de fora partes relevantes das questões que pretendia levantar. Terá sido uma ciência um pouco menor. Uma espécie de memória etnográfica profusa de significados que, entretanto, parecerá uma anedota. Como se eu tivesse que falar do ingá sem conseguir narrar como deve ser a escalada do barranco à beira do Manjerona, a segurar os ramos de mato resistentes à seca a me ajudarem a alcançar o ingazeiro bendito que, infelizmente, já não existe mais ‘nem para contar história’.

 

Imagem daqui