3 Julho 2016      15:47

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DIZ-SE QUE JÁ FOI...

Aconteceu na sexta-feira, num ambiente familiar e de descontração, a apresentação do livro "FALAR POR TRÁS DAS COSTAS" de João Pulquério Paula.

Num fim de tarde agradável no bar Avista do "Vitoria Stone Hotel", em Évora, o autor apresentou o livro que resulta da dissertação de mestrado em Sociologia que realizou na Universidade de Évora subordinada à temática do boato, sendo este um dos poucos estudos existentes sobre este fenómeno social.

O autor deste estudo é João Pulquério Paula. Nasceu em Castelo Branco, mas há muito que vive no Alentejo. Estudou Direito em Lisboa e fixou-se em Évora onde se licenciou em Enfermagem, profissão que desempenha atualmente. É ainda mestre e doutorando em Sociologia. Estivemos à conversa com ele:

Tribuna Alentejo (TA) - Como é que alguém, que nasce em Castelo Branco, acaba por vir viver para o Alentejo, depois de passar por Direito, Enfermagem e Sociologia?

JPP - É verdade…Tenho uma trajetória de vida nada linear. Já vi isso como um problema. Quando procurava emprego alguém me dizia que, aos olhos do recrutador, ou punham-me de parte porque pensavam “o que é que este tipo quer da vida?”, ou então poderiam pensar que seria alguém interessante. Devido a isso não me considero uma pessoa “formatada”, e acho que estes backgrounds mais diversificados acabam por ser uma vantagem. Em Portugal há muito a ideia da linearidade…Bem, mas voltando a mim, a minha família paterna tem raízes no Sabugal, eu nasci um pouco mais abaixo em Castelo Branco. Mas devido ao divórcio dos meus pais saí de Castelo Branco muito novo e a infância estive em Portalegre na casa da minha mãe. Depois, já adolescente estive uns anos a viver em Abrantes na casa do meu pai. Ou seja saí da Beira Baixa, fui para o Alentejo e depois Ribatejo. Quando terminei o 12.º ano fui para Lisboa para a Universidade Nova estudar Direito, mas a certa altura desiludi-me e achei que não era aquilo que queria. Mas tinha a noção que tinha que tirar um curso superior em que a relação interpessoal fosse a base. Como os meus pais eram enfermeiros, acabei por ser influenciado e mais tarde acabei por ingressar no curso de enfermagem. Fiz os exames nacionais e entrei na Escola Superior de Enfermagem de Évora, apaixonei-me por Évora e por aqui fiquei. Mais tarde, concluí na Universidade de Évora o mestrado em Sociologia, do qual resultou este livro.

TA - Tendo estudado direito, sociologia e enfermagem e trabalhando como enfermeiro no Alentejo, há dias em que também precisa de ser sociólogo ou advogado com os doentes?

JPP - Sem dúvida. A enfermagem, tem um lado técnico, se quisermos designá-lo assim, de procedimentos tais como puncionar, administrar medicação, etc. Mas relevo sobretudo a dimensão interpessoal e humana que se estabelece, e é aí que está o core da enfermagem, e é aí que a sociologia e mesmo o direito têm um lugar. A vertente da sociologia talvez mais, pois há que lidar com situações muito diferentes, estabelecer uma relação com o doente mas também com as famílias, lidar diariamente com o sofrimento e com a morte, cumprir os procedimentos exigidos, e são muitos, tudo isso trabalhando em equipa, não só com outros colegas meus, mas também com outras classes profissionais tais como médicos e auxiliares. Tudo isto, toda esta complexidade de relações interpessoais que se estabelece, do ponto de vista sociológico é muito rico. Por outro lado, se pensarmos que um enfermeiro no exercício das suas funções tem como obrigação ético-legal defender os interesses dos utentes, existe aí, se quisermos, uma aproximação ao direito. E isso é algo que acontece diariamente. Não só isso, mas algumas questões da área da bioética, e que também tocam o quotidiano de um enfermeiro, ou pelo menos do meu que exerço funções numa medicina.

 

TA - Quais foram as bases para partir para este estudo, sobre o boato, de quem foi a ideia? E de transformar, depois, uma tese de mestrado em livro?

JPP - Partiu essencialmente do que observei em vários grupos profissionais, uns onde estava inserido e outros que observava de fora. Percebi e senti que este tipo de conversas, além de frequentes, influenciam muito a dinâmica e a vida do grupo. A certa altura entrei numa aula da Prof.ª Rosalina Pisco Costa, a minha orientadora, e propus estudar o boato. Os primeiros rascunhos da ideia foram feitos nessa aula. Mas neste ponto era uma ideia ingénua, muito inocente mesmo. Depois há que concretizar e operacionalizar, arranjar indicadores, pesquisa e mais pesquisa, integrar a teoria e a metodologia e toda essa construção envolve muito trabalho. Não bastam boas ideias se não fizerem sentido, se não forem exequíveis, se já foram estudadas. Este foi outro aspeto que me motivou, é que existem muito poucas investigações sobre o boato, e se pensarmos na área da Sociologia e em Portugal talvez não haja mesmo nada. Com este desenho, com esta abordagem, bem isso certamente não existirá. Digo talvez porque é sempre muito arriscado, com os inúmeros estudos que saem todos os dias, ter a certeza absoluta – ninguém conhece cabalmente todos os estudos que existem mesmo sobre uma certa e determinada área. Felizmente tive a sorte de encontrar a Prof.ª Rosalina que se interessou, que me incentivou e deu muita liberdade. Eu acho que talvez com outra orientação, mais intrusiva, ou que enveredasse por áreas que desgosto nada disto tinha resultado. Bem, e não é um tema “seguro”, e aí devo dizer que a minha orientadora também teve alguma coragem. Teria sido mais fácil dissertar sobre outra coisa e obtido o grau de mestre na mesma.

Quanto a transformar a dissertação em livro, na discussão o Prof.º José Machado Pais incentivou-me a escrever um artigo, porque havia ali material suficiente para isso. E é o curso natural destas coisas, escrever artigos, comunicações em congressos, isso é o mais óbvio. Porém, depois da discussão pensei em enviar a dissertação para uma editora, e assim fiz. Achei que não tinha nada a perder. A Chiado respondeu-me passado uns dias, porque, presumo eu, viu que seria um livro vendável, com potencial comercial. Esta não é uma dissertação sobre temas esotéricos que só pessoas que sabem muito daquela área específica entendem. Este tema, toca a todos, todos já ouvimos e participámos em boatos e assim o público-alvo deste livro é imenso: somos todos nós.

 

TA - E o boato, chega a ser uma doença da sociedade, ou apenas um conjunto de mitos e teorias infundadas, fruto do discurso, que não chegam a lugar algum? Como é que nasce o Boato?

JPP - Como nasce o boato, como se dissemina e porquê essa é a questão do milhão de dólares, não é? Mas o livro responde a isso. Penso que estão ali enunciados e analisados todos os componentes que podem influenciar e originar um boato. Normalmente parte de uma base factual, mas depois tudo é distorcido, acrescenta-se o sensacionalismo e o fantástico, porque só assim se replica. Por isso é que nos lembramos da história do lobo mau, é um pouco esse o mecanismo e isso está estudado. As emoções influenciam muito a tua memória. O boato serve-se disso. Por isso é que o boato positivo, embora possa existir, tem um potencial replicativo muito menor do que o negativo. Porque tu dizes: “epa aquele tipo é muito fiel à mulher”. Quem é que vai replicar isto? Ninguém. Se disseres o: “tipo é infiel”, talvez alguém o possa replicar, mas se disseres: “o tipo é infiel, deu um murro à mulher e não quer saber das filhas”, aí o potencial replicativo é maior. O boato precisa de apelar à emotividade do auditório, de criar impacto e de um certo encaixe ao alvo. Existem mais fatores que estão na origem do boato mas destacaria estes.

Respondendo à primeira questão, mais ampla….bem, eu acho que a sociedade é demasiado tolerante com certo tipo de discursos e atitudes. Há coisas que são tipificadas como crime, e aí temos a difamação que no fundo é um boato. Mas existe um nível antes deste, em que a sociedade deveria sancionar socialmente quem produz e reproduz estas conversas e não o faz. Achamos normal, dizemos que ele ou ela é assim e resignamo-nos, e desse ponto de vista é uma doença da sociedade. É uma questão que só a educação resolverá, mas neste momento penso que existem muitas “incivilidades” que passam despercebidas, que são replicadas e algures atingem e magoam alguém. Portanto o boato chega sempre a algum lado, mas também corre muito em círculos próprios ou bolsas que o balizam. Penso que é preciso alguma vigilância e estar muito atento ao que se diz, a quem se diz, e como se diz, assim como ao que se ouve dizer. Filtrar, perceber a base factual, o contexto, o conteúdo, quem o diz e porque o diz. Neste estudo o material empírico acaba por revelar aquilo que designei como o critério da intencionalidade, portanto este, a par de outros critérios podem ser uma forma de destrinçarmos as conversas triviais e inconsequentes, de conversas de índole mais destrutiva e focalizadas num indivíduo em particular. Porque também há o boato trivial, que se calhar até é essencial à vida em sociedade. E há a crítica legítima a um terceiro. Não podemos confundir as coisas.  

 

TA - Os portugueses, e os alentejanos em específico, são particularmente adeptos do boato?

JPP - O boato é um fenómeno social e, do que estudei e li, e a opinião que tenho formada é que estará presente em todas culturas. Mas sim, acho que depois existem certos fatores culturais, digamos assim, que podem favorecer o boato. Não sendo antropólogo, nem tendo estudado dessa perspetiva o boato, mas acho que o boato nos EUA correrá muito mais facilmente do que por exemplo no Japão. Embora vivamos num mundo globalizado, há atitudes e modos de agir muito diferentes em várias sociedades. Há um dos entrevistados que refere que o boato é muito português… Não sei se concordo plenamente. Acho que em certa medida é inerente à natureza humana, ainda que possa ser muito mediado por fatores culturais. Prefiro explicar doutra forma: de uma forma geral, as redes mais densas e o fechamento tendem a favorecer o boato, que tende a dispersar-se e a diluir-se em redes mais vastas e esparsas. Tanto há boatos em Lisboa, como em Évora, é igual. Porém em Lisboa estás num meio mais anonimizado, passas mais facilmente despercebido e os que têm “interesse” em ti e que porventura poderão lançar ou replicar um boato serão também menos.

 

TA - No seu estudo, ao abordar as pessoas, qual foi a recetividade para falarem sobre o assunto e que ilações se podem tirar daí?

JPP - Estudar o boato é estudar um tema tabu e um tema muito desconsiderado. Eu penso que as atitudes mais defensivas resvalaram entre o receio e a desconsideração do tema em si. No caso dos docentes universitários, penso que existe mais desconsideração. Isto porque associam logo o objeto a mexericos, à banalidade, às revistas cor-de-rosa e isso não é digno de um académico que passa as noites em claro a ler artigos científicos, lógicos e insonsos a tentar afastar o senso comum e este tipo de conversas. Sei lá, à partida o raciocínio parece-me ser este: não ver o boato como digno de análise cientifica. Eu lembro-me que estava num gabinete a entrevistar um professor e de repente entra outro docente, e o meu entrevistado diz que está a ser entrevistado para uma tese sobre boatos, mas diz aquilo com uma fácies de verdadeiro interesse por alguém estar a estudar algo diferente. Porém, quem entra, assim que ouviu a palavra o tema da tese, desconsiderou logo…. Outros casos aconteceram, mas as razões estão muito ligadas à desconsideração do objeto de estudo. Mas também convém não generalizar, acredito que a esmagadora maioria dos docentes entende o tema como muito interessante. Contudo, se isto acontece na academia, agora imagine-se noutros meios…

Por outro lado, também senti que muitos entrevistados tinham receio. Acho que muitos pensavam que eu queria ouvir os boatos que eles sabiam, outros, penso que sabiam que ao falar desse tema, com aquelas perguntas, iriam expor a opinião que tinham do grupo ou instituição onde estão inseridos, ou de pessoas e de casos concretos que tivessem acontecido e isso causa, evidentemente, algum receio. E é verdade que o guião levava a isso, mas nunca me interessou que nomeassem pessoas ou que se focassem nos boatos que ouviram, por exemplo o que fulano y disse sobre x. E se o dissessem, e alguns disseram-no, tudo isso seria anonimizado. Todos sabiam isto e com o desenrolar da entrevista isso ficou evidente. Mas quem efetivamente entrevistei, deu a sua opinião de forma sincera, tanto quanto pude aferir, e confiou em mim e isso muito agradeço. Sem eles nada teria sido possível.

 

TA - Quais foram as maiores dificuldades que enfrentou ao longo da pesquisa?

JPP - Eu penso que existem as dificuldades inerentes a este tipo de estudos, a fase de recolha de dados e a análise do material empírico é efetivamente muito morosa. Mas isso fará parte de qualquer estudo desta natureza. Este contou com outras dificuldades, como por exemplo existirem poucas investigações sobre o assunto. Em Portugal, tanto quanto pesquisei na altura, mas mesmo hoje, duvido que exista algo parecido. Depois o que existe, é feito por psicólogos sociais e não propriamente por sociólogos. Essa é a desvantagem de seres dos primeiros. Contudo, se ultrapassares essa dificuldade, consegues fazer algo diferente e que se possa destacar. Mas a maior dificuldade foi de facto alguma pressão social…de descrédito e desconsideração de alguns. Muito relacionado com o objeto de estudo como já disse. Mas a ideia é efetivamente muito boa, tem uma integração quase perfeita na Sociologia, e enfim…talvez tenha que ver com as formações e os contextos. Pessoas ligadas a áreas, que não vou especificar, ou talvez por serem mais open minded, referiram logo que o estudo deve ser muito interessante. Li há pouco tempo que o presidente do júri desta dissertação, o Prof.º José Machado Pais publicou um livro sobre o fenómeno da prostituição em Bragança, o célebre caso das mães de Bragança, que demorou 12 anos a construir e só posso imaginar a recolha de dados, o que ouviu, os receios…Há temas e temas, uns mais inócuos socialmente que outros.

 

TA - O boato tem um objetivo concreto ou é inocente? Todos podemos ser mentores de um boato, mesmo que involuntariamente, ou alvo de um?

JPP - O boato inocente pode existir, e corresponde à conversa trivial, inconsequente, ao grooming social. Essa vertente existe, sem que venha necessariamente daí algum mal ao mundo. O social é algo muito plástico, espontâneo e imprevisível, não que tem existir necessariamente uma arquitetura bem planeada e delineada para atingir alguém. O boato pode surgir involuntariamente, e às vezes surge de facto assim. Muitas vezes os atos mais banais e triviais, são interpretados e colocados noutro contexto e de repente já circula um boato. Isso é perfeitamente possível. Mas o boato negativo, esse normalmente tem sempre associada uma certa intencionalidade do boateiro, que procura obter uma vantagem. A conversa tem um fim, replicar-se e atingir o alvo, desvalorizando-o, ou “apoucando-o” como diz um dos entrevistados, conseguindo por vezes ostracizar o alvo, e daí algum paralelo que faço com o bullying. O bullying serve-se do boato.

 

TA - Qual é o impacto e mudanças espera alcançar com esta publicação? Está à espera de alguma reação dos leitores?

JPP  - Bem, quanto ao estudo em si sinceramente espero críticas mais positivas que negativas. Tudo o que ali está referido, tudo o que se conclui tem por base os aspetos metodológicos, a literatura e a empiria, portanto desse ponto de vista o estudo é sólido. Agora, certamente não é perfeito, ninguém faz estudos perfeitos, e este não é diferente. A Prof.ª Ema Pires numa aula, estava eu a finalizar a dissertação, dizia-me que o importante é estar escrito. Há uma expressão no mundo académico, "publish or perish" que vai um pouco no mesmo sentido. E o estudo está aí, está publicado, devolvido à comunidade para que o avalie, mas isso já é algo que não controlo e nem me preocupa muito. Preocupou-me fazer o melhor possível, dadas as circunstâncias e isso sei que fiz. Quanto a eventuais mudanças que possam ocorrer, penso que tem desde logo o mérito de chamar a atenção para a temática e talvez levar os leitores a refletirem sobre o que vivem diariamente. Como já disse, há muitas conversas e boatos que passam invisíveis por nós diariamente. Cada um de nós deve assumir uma atitude mais proativa e diferente quando está perante um interlocutor que reiteradamente utiliza um discurso deste tipo. Senão seremos cúmplices por omissão. Acho que socialmente toleramos muito e não sancionamos certas conversas de cunho mais negativo e focalizadas sobre alguém.

 

TA - Há algum “boato” que queira partilhar connosco sobre o Alentejo?

JPP - Essa ideia replicada até à exaustão de que os alentejanos são preguiçosos. Essa é mesmo um boato maldoso….