4 Março 2017      14:34

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DIA DE CHUVA

Chovia como quem na derramava. Era tanta a água que, deste lado do vidro, esvaziava os pensamentos enquanto os baldes se enchiam, lá fora, apanhando a água que os beirais retiam também. Os meus olhos fixavam-se num ponto que mudava constantemente e parecia que nada fazia sentido… as imagens não paravam de correr e o desconcerto era total. Não se admirem, pois, se as minhas imagens que veiculo neste texto, não façam sentido, elas também.

A minha janela tinha, do lado de dentro, uma cadeira virada para o vidro. E nessa cadeira estava eu sentado, pensando em nada e na chuva. Pensando na chuva e em nada. Pensando em tudo… num silêncio comovente como as lágrimas que o céu deixava cair. Estas, ao contrário das minhas não eram salgadas.

No mar, o sal. Nos meus olhos, as lágrimas. Lá fora, do outro lado do vidro, a chuva e o vento. Poderia fazer tantas analogias com estas imagens. Mas as forças rejeitam-me e o copo que seguro na mão quase cai, desprovidos os meus dedos e as minhas mãos de força. O copo está cheio, uma meia dúzia de gomos de gelo, uma rodela de limão, outra de lima e o gin misturado com a água tónica.

Os meus olhos estão vazios, como se a natureza em frente tivesse morrido naquele momento. Não penso em nada. As gotas da chuva interrompem a natureza. E lamento, lamentando-me da vida e das coisas invisíveis que não vejo e não posso mudar. As que vejo, as que são concretas mudo-as e disponho-as à minha vontade. Olho porá as gotas que escorrem pelo vidro abaixo. Hoje é dia de chuva e o Sol escondeu-se atrás das nuvens cinzentas e deprimentes. Podiam ser alegres e virantes mas o meu olhar não lhes permite a aventura. Nem o sol, nem o verde das árvores que estão além do vidro que me separa a mim delas…

Hoje é dia de chuva, o gin tem o gelo que se derrete devagar. Bebo mais um trago. Inalo, sem querer o cheiro da lima e do limão. Na língua uma ligeira acidez e picadas da água tónica. O gosto do zimbro permanece na língua. A mente não sossega. Anseio o Sol, as cantigas alegres de Verão. Nos dias de chuva em que a terra se enche de água e se hidrata e se alimenta. O meu corpo parece seco… desvanece e perde a água que o constitui. Só o copo que seguro na mão me hidrata e inebria. Toda a água lá fora que me falta, existe em excesso lá fora. No vidro, nos baldes, na terra, nas folhas das plantas, na medida de todo o ser que não eu.

Não faço sentido nas frases curtas. Talvez seja a confusão das águas que me não fazem raciocinar direito. Os dias de chuva fazem-nos perceber e ajudam-nos a olhar o que nos rodeia de forma diferente. No quentinho da casa, no aconchego de uma cadeira reclinável em que o soalho de madeira castanho-escuro me dá o chão e me faz sentir seguro. Só os cabelos se arrepiam com o toque do gelo na língua e a vontade de passear na chuva cria um semelhante arrepio que se eleva do fundo da espinha até ao pescoço. Fico com a pele como se de uma galinha se tratasse.

Fecho os olhos e imagino o horizonte. Também nele há uma certa nostalgia. Seguro-me, no impulso de saltar da cadeira e de correr na chuva como quem não se molha. Seguro-me como se o copo de cristal que tenho na mão fosse a minha raiz ao chão. A terra estremece em meu redor, com o barulho dos trovões que acompanham a chuva. São como as cornetas que anunciam a chegada do exército das gotas. Os relâmpagos abrem caminho. Imagino um exército de gotas a caminhar. Imagino-me a dirigir esse pelotão.

E, no sentido do desconcerto que as coisas não têm, abro e fecho os olhos. Nada na chuva me levará e pensar. Talvez escrever um texto. Não posso sair. As gostas da chuva seriam como gotas de ácido a queimar-me a pele e a desfigurar a minha perfeição imaginada. Fisgo o copo já quase no fim. Permaneço imóvel. A chuva continua a mexer-se e nada do que imagino se confirma. Fico assim, como dantes.

Imagem de capa de buzzcitron.com