13 Maio 2016      20:02

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CORDIALIDADE, DISCRIMINAÇÃO E RECATO

"MENOS ESTRANGEIRO"

Muitos rapazes e raparigas das classes medianas, com a ajuda das igrejas, da comunicação de massas e da escola, aprendem a suplantar a indignação em razão do mito da cordialidade. Porém, quando atingimos a idade adulta, descobrimos que não somos assim tão bons uns com os outros e nos tornamos monstros competitivos, muitas vezes destituídos de mínimos preceitos éticos.

Por outro lado, os mais pobres são levados a acreditarem no contrário.

Segregados em suas casas precárias onde antes havia senzalas, as populações afro e nativo descendentes brasileiras desde cedo aprendem que são ingovernáveis, perigosas por natureza, incivilizadas e, por isto, todo o aparato de segurança pública deve servir para lhes conter a revolta, interpretada pelos meios de comunicação como “arruaça”, “confronto”, “vandalismo”, “ingratidão” etc. A estes rapazes e raparigas sem lugar na comunidade cordial é negado o acesso a direitos sociais ou mesmo básicos.

Estas duas conceções de Brasil revela a nossa contradição fundadora. Aos cordiais, chamemo-los assim, resta o medo da perda de privilégios. Aos segregados, o encarceramento ou a morte pelas mãos das polícias. Na verdade, a reiteração desta última imagem desoladora é necessária para o amparo da consolação simbólica das classes mais abastadas. Somente somos cordiais enquanto temos as instituições do Estado ocupadas por representantes das classes altas, detentores do direito ao mando e protetores de privilégios históricos.

Entretanto, como imaginar qualquer traço de cordialidade uma vez que contingentes majoritários da população não são tratados como cidadãos? Se observarmos bem, ao longo da História Moderna, mecanismos ideológicos parecidos vêm sendo engendrados por distintas elites políticas nacionais. O poderíamos dizer, por exemplo, sobre o tratamento da Europa atual em relação aos “refugiados”, se não o analisarmos sob o prisma da discriminação e da ação repressiva dos Estados Nação para a proteção das suas classes mais favorecidas?

No Brasil, ainda que os segregados sofram mais, especialmente devido à ação violenta estatal, os cordiais também são vítimas de uma violência eminentemente simbólica, que os atinge de acordo com o seu estatuto socioeconômico ou com o seu gênero. Isto quer dizer que, quanto mais branco e endinheirado, mais facilmente se considera o homem cordial, ainda que ele seja um crápula. As mulheres das classes médias e alta, por sua vez, são ensinadas a serem recatadas.

O recato, segundo um preceito muito difundido também na península ibérica, é o traço definidor da honra feminina. Ele restringe a atuação das mulheres ao ambiente doméstico e as leva a aguentarem todo o machismo que as condena ao assédio físico e moral e, também, muitas vezes, à morte. Portanto, eram as mulheres e os pobres, especialmente os negros, que compunham um contingente de indivíduos tolhidos de direitos. Diferentes violências continuam ainda hoje a ser usadas para lhes conter a revolta.

Encontram-se, no campo das artes e do jornalismo brasileiros, muitos exemplos de como estas ideias retrógradas ainda sobrevivem com força surpreendente.

Chamo a atenção para a balbúrdia indomável apresentada nos filmes “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Kátia Lung, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. O que estas películas veiculam corresponde ao ritual constante de criminalização e de extermínio das populações negras brasileiras. O sucesso que estes filmes obtiveram leva-me a crer que eles cumprem uma função pedagógica importante, na medida em que essencializam e racializam o problema da segurança pública e heroificam a ação verdadeiramente fascista das polícias. São libelos racistas, indícios claros de que a ação colonial exterminadora ainda dita as regras no Brasil.

O outro exemplo é recente e acende luzes sobre o futuro do país e sobre os perigos que nos estão reservados.

Há dois dias, o jornal O Globo publicou o que chamou de perfil do presidente interino, Michel Temer, com o título “O Homem Cordial”. Tudo o que vem escrito no texto parece obra ficcional, graças ao acesso que se tem hoje em dia a outras fontes informativas, as quais comprovam o caráter delinquente deste infeliz ator político nacional. Entretanto, a obra pseudo-jornalística faz reviver o mito da cordialidade e, mais do que isto, esclarece que ele está ligado àquele ideal de homem branco, instruído e de posses.

Ainda mais revelador foi a publicação, semanas antes, pela revista Veja, de uma reportagem sobre a esposa de Michel Temer, Marcela Temer. Sob o título “Bela, Recatada e “Do lar”, a peça jornalística a retratou segundo aquele ideal sexista excludente, restrita ao ambiente familiar, apesar de sua formação em Direito.

Como vemos, não é de surpreender que o governo interino não tenha sequer uma mulher no primeiro escalão governativo e muito menos negros ou indígenas. Como vem sinalizando desde as suas primeiras horas, este período sob a égide do golpismo reserva-nos retrocessos que, embora previsíveis, surpreendem por nos levar tão longe.

Ao invés de sermos levados politicamente de volta a 1964, – o que já seria muito grave -, fomos dragados pela História e chegamos a 1850, quando os avanços liberais, jurídicos e tecnológicos mudavam a face do ocidente, com exceção das colônias que, então, eram apenas palcos da dominação mais abjeta, centrada no escravismo e na pauperização da maioria da população.

De volta a 1850, quando o Brasil já conhecia muito bem o peso do chicote dos “homens cordiais” sobre as costas dos negros, dos índios, dos pobres em geral e das mulheres, caso estas não fossem “belas, recatadas e do lar”.

 

 

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