28 Fevereiro 2016      10:10

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COMO PREPARAR-SE SERENAMENTE PARA A MORTE

"TEXTURAS"

É costume o comum dos mortais, aquando do falecimento de um familiar, de um conhecido ou de um indivíduo ilustre, endeusar o infeliz, sobretudo nas redes sociais (onde são expostos e despejados os despojos _ passem-me a paranomásia _ da nossa existência). Mas quando se trata de uma referência na política, na arte ou nas ciências, então parecem não chegar os epítetos mais laudatórios porque, também, por portas e travessas, acaba por constituir um bálsamo para o ego o facto de assumir-se como supremo “connaisseur” da obra do falecido.

Na verdade, é preferível, de longe, valorizar o génio e o brilhantismo dos vivos[i], já que estes sempre podem optar por retribuir com qualquer coisinha, nem que seja um sorrisozinho de desprezo e um olhar condescendente.

Com efeito, a realidade é que pouco reconhecemos o valor das pessoas em vida. É humano, é assim mesmo. Se os homens não reconhecem tanto o valor dos seus pares em vida e se tendem a elogiá-los post mortem é porque o ser humano tem realmente um defeito deplorável: acha que é imortal. Por isso, apesar de referir-se com frequência à morte, nunca está, de facto, à espera que ela esteja por perto e nunca está verdadeiramente preparado para a sua chegada. Logo, quando chega, de foice em punho, e ceifa a vida daqueles que constituem as nossas referências, por mais longínquas que elas possam ser, parece-nos sempre que leva um pouco da nossa existência a talho de foice.

No fundo, é provável que se trate de uma falta de oportunidade, de um problema de “timing”, de uma questão puramente logística, pois, o tempo, é sempre algo que nos falta. Nunca há tempo. Mas quando morre alguém, o tempo pára porque a vida pára e, ironicamente, o tempo desaparecido em vida, acha-se na morte.

Mas, a verdadeira questão que se impõe aqui e agora é, de facto, prática e terra-a-terra: como preparar-se serenamente para a morte? Já Umberto Eco se tinha debruçado sobre esta questão[ii] e outras bem mais prementes e incontornáveis (como viajar com um salmão, como reconhecer um filme porno, como reconhecer a religião de um software, etc.), porém, para grande infortúnio nosso, na maioria dos casos, sem ter chegado a uma verdadeira conclusão.

No entanto, no que respeita à serena preparação para a morte, Eco diz claramente que, para tal, é necessário preparar-se psicologicamente, de maneira a não ficar com demasiada pena de deixar esta vida. Com efeito, a única maneira de ficarmos satisfeitos, no momento fatal de abandonar este mundo, consiste em ir-se habituando gradualmente à ideia de que os homens, sejam eles artistas convencidos, políticos à rédea solta, críticos apocalípticos ou heróis carismáticos, são todos uns palermas[iii].

Mas, até ao fim, deve resistir-se a essa incomportável revelação, aceitando a tendência natural que consiste em crer que os homens não são todos indistintamente uns palermas porque só assim se consegue entender que vale a pena viver a vida. No entanto, convém, ao longo do tempo, bem devagar, ir apercebendo-se dessa realidade para poder chegar, no momento fatídico, a essa conclusão nirvânica e fazer de o acto de falecer algo “esplêndido” [iv].

Contudo, Eco adverte para a necessidade de reservar uma excepção, até ao último momento, para um ser amado e admirado por todos. E, na hora da morte, aperceber-se finalmente de que esse último ser é, também ele, um palerma, para enfim poder morrer em paz.




[i] Vide crónica “Hermenéutica para totós”.

[ii] Eco, Umberto, Comment Voyager avec un Saumon – Nouveaux pastiches et postiches, Grasset, 1992.

[iii] Eco, Umberto, 1992, p.220.

[iv] Eco, Umberto, idem..

 

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