19 Dezembro 2020      12:29

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A cobra que sonhava ter pernas

Nascida nos desertos de África, Malandrinha, era uma cobra grande e vistosa. Era um réptil cheia de características boas, coisa que a diferenciava de todas as outras cobras.

No deserto onde vivia, as cobras que faziam parte do seu habitat natural todas tinham péssima reputação e eram todas muito más.

Mesmo entre si abundava a maldade e tentavam todas prejudicar-se umas às outras.

Se fossem todas postas dentro de um saco ou dentro de um balde, talvez não saísse de lá nenhuma viva, pois certamente se teriam aniquilado todas, uma a uma.

Eram seres vis e com requintes de maldade. Por isso mesmo, o criador universal que fez as cobras decidiu não lhe dar pernas. Não sei se algum dia as cobras tiveram pernas ou se sempre rastejaram. Deverá ter algo a ver com a história de Adão e Eva em que o réptil serpente convenceu Eva a trincar uma maçã, que por sua vez convenceu Adão e, puf, em menos de nada estavam fora do paraíso, sem roupinha que lhes valesse e cheios de frio, pois claro está. Bem, ao menos ainda tinham pernas. A serpente ficou também fora do paraíso, sem roupa e sem pernas. Não sei se as tinha antes, como já disse, mas se as tinha, foram-se e passou a andar movida pelos impulsos da sua parte de baixo.

Quanto à roupa, tem de mudar a pele uma ou duas vezes por ano. Assim rastejará melhor. Mas, senhor leitor, não me quero afastar desta nossa narrativa que fala de Malandrinha, que queria ter umas pernas. Ela bem via ao longe os outros animais com pernas. Via elefantes com pernas que pareciam troncos de árvores, via pernas tão compridas que eram as das girafas e via as pernas finas das gazelas. Todas elas lhe faziam inveja. Havia depois aquelas que estavam mais próximas de si, as dos lagartos, que eram umas pernas tao eficazes e pareciam dar uma brilhante rapidez à locomoção do animal. Era uma daquelas que Malandrinha gostava de ter. Nada a faria mais feliz.

Sabia que não era como as outras cobras e sofria imenso com o estereótipo e o afastamento de todas as outras espécies. O estigma era imenso e Malandrinha não queria viver assim. Por um lado, a sua cabeça estava nas pernas e na forma de vida dos outros animais e, por outro, afundava-se na maldade dos animais.

Certo dia, foi ter com o lagarto Velho, que era mais ou menos uma espécie de bruxo lá do sítio e que fazia milagres. Expôs o seu problema, que o lagarto ouviu com toda a atenção e, depois de refletir, pediu-lhe que voltasse daí a um mês, trazendo consigo uma pele que entretanto sairia. Ele, lagarto, ia pensar numa solução mágica e quase que lhe assegurava que teria umas pernas novas.

Só que o pobre lagarto não podia assegurar isso é muito menos garantir que a cobra iria ter pernas. Isso, apesar de ser o sonho dela, era impossível. Mas lagarto era animal que não se deixava parar por pequenos contratempos e este, pensava, era apenas um pormenor.

O tempo passou e aí, mais ou menos a meio do mês, veio a solução num dia em que lagarto foi à cidade grande. Ora não é que estava um grupo de seres com duas pernas a andar em cima de uma coisa que tinha rodas e deslizava? Sabemos nos que eram humanos e skates. Aí está a solução, o Velho rapinava um dos aparelhos e convencia a Malandrinha de que aquilo era melhor do que pernas porque andava mais depressa.

Assim aconteceu. No mês seguinte, quando a cobra foi procurar a solução, o lagarto já lá tinha o bendito skate. A cobra olhou para aquilo e disse-lhe que não pareciam nada pernas. Ele explicou-lhe os benefícios de rodas em vez de pernas. Por isso é que se inventou a roda! Porque anda mais depressa do que pernas. Convencida, a cobra entregou-lhe as peles e levou o skate. Sem braços e sem pernas, a única solução foi saltar para cima dele e, no preciso momento em que o fez, aquilo começou a andar. Apanhou tal velocidade que a cobra não o conseguiu parar e estatelou-se numa parede que apareceu na frente. Tinham os dois esquecido a parte em que se não tem pernas nem braços e o skate não tem travões, será muito difícil parar.

Foi a única vez que o usou. O instrumento ficou no mesmo sítio e Malandrinha, rastejando, voltou para o ninho continuando a sonhar com pernas, fossem elas de que feitio fossem.