28 Janeiro 2017      11:16

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CICATRIZ

"PARALELO 39N"

Caiu quando era pequenino. Andava brincando junto do monte, em cima de umas rochas e escorregou, bateu com a testa numa das pedras e fez um largo golpe, de onde o sangue começou a jorrar de imediato. O miúdo assustou-se e começou a chorar incessantemente, enquanto as lágrimas e o sangue se misturavam e desciam a sua pele de criança. As pestanas e a sobrancelha do lado esquerdo, onde a pedra fizera o corte estavam, todas elas ensanguentadas.

A imagem que se via era aterrorizante, misturada com o choro de dor e de pânico do menino que caíra na rocha e, face à dureza do objeto contundente, ficou marcado e ficaria marcado por muitos anos. Todos aqueles que viveria, diria eu.

A mãe, ao longe, ouvindo o choro desesperado e doloroso do filho, largou tudo o que estava a fazer e correu em seu socorro. As palpitações do seu coração aumentaram exponencialmente e todos os pensamentos, maus, sombrios, temerosos, a invadiram e conseguiu farejar e sentir o perigo que se escondia atrás do monte. O filho continuava a chorar, olhando para o sangue que escorria e conseguia ver. Começara também ele a correr na direção do monte, em busca de socorro. Imaginava a dor que, além daquela já existente, sentiria quando fossem lavar a ferida ou até levar pontos na pele.

Tinha medo e isso fazia com que o sangue saísse mais depressa. A cor avermelhada do que nos faz viver, do que nos alimenta o corpo e é de perto e de longe uma das coisas que mais tememos. Há pessoas que não conseguem ver sangue. Desmaiam mal o veem. Outras nunca lhe viram a cor. Outras ainda acham que o seu é azul e logo, por isso, diferenciadas do resto da população.

O sangue do gaiato era normal. Vermelho na sua essência e jorrava. A mãe chegou ao pé de si e, chorando já ela também, em pânico com o aparato da ferida, agarrou-o ao colo, arranjando a força de sete homens e correu para casa com o moço que continuava a chorar ininterruptamente. Um choro de dor e de medo. Chegados a casa conseguiram, com água oxigenada e panos, ligadura e gaze absorver a maioria do sangue que saía. A ferida não era, afinal, tão má quanto parecia. Mas era, ainda assim, má o suficiente para ir ao centro de saúde levar uns pontos, a fim de prevenir que a cicatriz não fosse tão evidente. As cicatrizes são marcas que o nosso corpo adquire e que significam que passamos a ser imperfeitos na pele e aperfeiçoados na nossa singularidade.

Depois da visita ao centro de saúde, ainda com o choro do medo e da dor, agora mais aliviada, vieram os pensos e os pontos e durante uns dias, até que a pele sarasse, assim continuou o rapaz a sentir-se com medo de saltar em pedras e de sair da sua zona de conforto. O medo transforma as pessoas e faz com que a reação a situações futuras seja sempre diferente daquilo que era, antes. O medo tem medo de si próprio e aquilo que cria na cabeça das pessoas para não se sentir sozinho, deixa-nos sempre admirados, em cada situação.

A partir dessa cicatriz, para sempre visível na testa, o medo permaneceu bem vivo nas memórias do desafortunado. À medida que o tempo foi passando, também a memória da queda foi desaparecendo e um diz a única memória era essa cicatriz. Tratava-a como a tabela cronológica, as memórias de tempos passados, um bocado como as marcas nas árvores que indicam os anos de existência.

A criança cresceu e depois dessa cicatriz muitas outras vieram, acompanhando o crescimento. Homem adulto pensava que ainda bem que as tinha. Tinha vivido sem medo depois dessa primeira e isso, na vida de um homem, conta muito. 

 

Imagem de mummypages.ie