9 Agosto 2020      12:26

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Chega! ... de fake news

Ao entrar num dos vários grupos de apoio a André Ventura, surge destacada uma publicação onde se lê “Se Portugal fosse um país racista, como é que seria possível a eleição do primeiro ministro?”. Em resposta um utilizador escreve “O indiano não ganhou as primeiras eleições em que foi primeiro ministro ele e os outros crápulas, arranjaram a tal geringonça para correr com o coelho...”. O grupo em causa tem aproximadamente 17 mil membros. Mesmo admitindo que uma cota parte são mirones como eu própria, é um número que assusta e que tudo indica que vai crescer nos próximos tempos. Continuando no mesmo registo, as publicações que se seguem manifestam pelo menos um dos seguintes sintomas:

 

1.   O desprezo absoluto pelo poder instituído, que creem não atuar na defesa dos interesses da população.

Para ser nociva, uma publicação não tem que ser totalmente falsa. Aliás, a maioria do conteúdo classificado como “fake news” não são falsidades absolutas, são parte integrante de narrativas que apelam ao medo e à desconfiança. Generalizações de acontecimentos, manipulações de datas, atribuições de causalidades suspeitas, mas inverificadas, ou exagero de frequências. A manipulação da informação serve um argumentário no qual a classe política está totalmente corrompida e não é confiável. É nesse argumentário que surge espaço para uma figura que se apresenta como salvador(a) da nação, o herói antissistema que vai combater o mal. Curiosamente, são sempre figuras que pertencem e foram formatadas pelo sistema, e sendo-lhes dada a oportunidade, se provam tremendamente mais incapazes do que aqueles que são os seus oponentes políticos.

 

2.   A desconfiança relativamente às mensagens passadas pelas elites, sejam elas políticas, científicas ou académicas, que defendem factos e ideias que muitas vezes a experiência imediata e sensorial não corrobora, e “indo contra os meus interesses, quem são os especialistas para me dizer o que fazer?” -São especialistas. Por exemplo, negar o racismo quando é consensual entre aqueles que estudam o fenómeno na sociedade portuguesa que ele existe de forma estrutural, com base na opinião pessoal ou do vizinho, não devia ter valor, mas tem. A confusão entre factos e opiniões não nasceu com as redes sociais, mas as redes sociais meteram-nos um altifalante nas mãos e nisto, instalou-se o caos. A célebre frase de René Descartes “Eu penso, logo existo” parece ter sido substituída pela nova máxima “Eu penso, logo sei”.

 

3.   A descredibilização dos Media tradicionais, que “estão comprados pelo poder político e manipulam a opinião das massas”.

Em Itália, um grupo de investigadores fez uma experiência social antes das eleições de 2018, em que tentou perceber se a exposição a fake news influenciava a adesão ao discurso populista do Movimento 5 Estrelas. A conclusão foi que, de facto, tal não se verificava, ou seja, as pessoas não mudam as suas posições devido à exposição a fake news, mas expõem-se a conteúdo desinformativo, seletivamente, devido às suas crenças políticas pré-existentes. Apesar de algo contraintuitiva, esta descoberta é congruente com o facto de o nosso cérebro percecionar informação de forma seletiva, seja destacando a informação que vai de encontro com as nossas crenças em detrimento daquela que as questiona, seja distorcendo a informação de forma a ir de encontro com as nossas crenças, seja memorizando mais facilmente o conteúdo que, por reforçar as nossas convicções, nos faz sentir bem. Uma vez formadas as nossas crenças e impressões, é incrivelmente difícil, mesmo quando confrontados com factos, revertê-las, e incrivelmente fácil, reforçá-las. Aqueles que caem nas armadilhas das fake news, irão mais facilmente negar e descredibilizar as fontes que os coloquem em causa, do que mudar de opinião.

Ter consciência das nossas fragilidades cognitivas ajuda-nos a puxar o travão quando somos confrontados com nova informação, para ter tempo de questionar e duvidar de nós mesmos, antes de reagir.

 

4.   O discurso de ódio pelas minorias étnicas e pelo politicamente correto. “Pretos do cara... uma bala era pouco cá também fazem a mesma coisa venha o Chega” lê-se num comentário em reação a um vídeo que retrata uma situação de violência nos EUA. Numa outra publicação lê-se em jeito de graça que ”A maior fonte e patrocinadora do racismo em Portugal chama-se SOS Racismo”. Mark Zuckerberg disse recentemente numa entrevista que atacar a desinformação relativamente ao covid-19 era uma tarefa difícil pelo nível de incerteza e desconhecimento que existiu relativamente ao vírus, mas mais desafiante, diz o dono do Facebook, é o combate à desinformação em matérias políticas. Porém, há um sítio por onde se pode facilmente começar a arrumar a casa: o combate ao discurso de ódio, que coincide com o sítio onde termina a liberdade de expressão. Este combate deve fazer-se sem medo ou vergonha e tem a vantagem de estar sob jurisdição do Estado. O ódio é tido como agravante penal nos atos que são por este motivados. Os casos que chegaram aos tribunais por discurso de ódio estão, segundo o Ministério Público, citado no jornal Público, “longe de refletir a frequência com que este tipo de fenómenos ocorre”. Além disto é possível que a lei careça de uma melhor distinção entre difamação, ameaça e ódio. Que se comece a arrumar a casa. O discurso de ódio é crime, e as autoridades competentes devem ser dotadas dos meios e mecanismos para o monitorizar.

 

Chega de fake news, sim; mas também, chega de normalizar o Chega, o partido que se alimenta e cresce à base de desinformação que, não sempre, mas frequentemente, coincide com incitamentos ao ódio.

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Angela Rijo nasceu em Reguengos de Monsaraz e mudou-se para Lisboa aos 18 anos de idade. À data presente é estudante do mestrado em Psicologia Social e das Organizações, no Iscte, onde também colabora com o laboratório de comunicação Media Lab.