15 Abril 2017      11:51

Está aqui

CEBOLAS

"PARALELO 39N"

Hoje de manhã, aí por volta das nove horas, ia no metro em direção ao centro de Nova Iorque, metro cheio, gente de todo o feitio e dei por mim a pensar. Não raro penso quando estou sozinho e estou-o muitas vezes. É bom pensar, concordar com e discordar de. Perdoe-me lá o uso da preposição no final da frase, mas há vezes em que a própria gramatica nos intriga e faz pensar porque é que em papiá kristang se chama ossulíngua. Haverá uma explicação tão certeira como a de muitas outras coisas cuja explicação é tão evidente e não obstante nos escapa.

No pensamento, pensando nas coisas, cogitando amiúde nas vaguezas do mundo e ocorreu-me que nós, mulheres, homens, crianças, somos como as cebolas. Somos cebolas. Daquelas plantadas no campo, que posteriormente vivem na cidade, outras nas vilas, aldeias, montes. Bem, dito isto, sou uma cebola. Uma cebola grande, com a casca da cor da minha pele, e dentro dela, tantas camadas, cada uma mais forte que a outra. Cada uma mais diferente que a outra. As raízes são tão ténues quanto fortes na imensidão dos campos das cebolas.

As pessoas e as cebolas tantas vezes nos fazem chorar, muitas dessas vezes quando as cortamos e fazemos chorar, quando as magoamos, quando separamos as suas camadas. Entre uma e outra, as pessoas interagem entre si, conseguindo chegar a universos que, na filosofia das cebolas, não diria muito, mas naquela dos homens tem grande significado.

Serei uma cebola roxa, branca, castanha, suave. Não se evadem do campo onde nasceram mas perpetuam-se na cesta da despensa ou nos armazéns. As cebolas conseguem ser vista ao microscópio tal e qual as células das pessoas. Na imagem da cebola, vi o meu reflexo como se eu próprio estivesse a segurar a faca que iria separar cada uma das minhas camadas, ser cortado às rodelas e posto numa caldeirada de peixe. A imagem, no pensamento, nesta manhã, não me pareceu de todo descabida nem me chocou poder ser ingrediente em prato tão apreciado. A cebola é amarga e pica na língua. A língua saboreia a cebola e determina as nossas emoções, tantas vezes.

Continuo no meu pensamento, ocupado, agarrado ao longo corrimão de metal, tentando não me impor em cima de ninguém. Ocupando o meu espaço e esperando que ninguém o ocupe. O metro, a vida, as cebolas, o espaço, tudo me assaltava a cabeça e o pensamento. O meu olhar multiplicava-se entre o que fazia sentido e aquilo que não tendo, era a coisa mais certa e mais fiel naquele momento. Quem se vai lembrar de cebolas àquela hora. Talvez caramelizadas, com os cogumelos e os ovos. Mas não, a imagem vinha mesmo pelas camadas, pela profundidade do ser, pela cor que é diferente aqui e ali. A camada é igual, a casca diferente. É o que se vê.

Deveriam os filósofos até, escrever sobre isso, sem compromisso. Fosse o que fosse, contasse o contador de histórias a história da cebolinha. Ou talvez já exista. A filosofia da cebola ocupou-me o pensamento e as ideias que surgiram. Umas passaram, outras não passaram e eu, sendo menos filósofo e menos contador de histórias, conto e reconto a cebola e a cebolinha.

E nisto, sozinho, ouço a minha paragem anunciada em língua estrangeira e deixo-me levar a atravessar a porta. Deixo os rostos no interior e as cebolas imaginárias. Talvez ao jantar cubra os bifes ou deixe que a salada case comigo, tendo as cebolas como aliança, as lágrimas de contentamento a marcar o nosso compromisso com o azeite e o vinagre balsâmico. Filosofia da cebola, talvez. Combate a solidão e ajuda a temperar os meus dias.

 

Imagem de casaspossiveis.blogspot.pt