7 Fevereiro 2016      11:03

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CARTA ABERTA A UMA AMIGA (OU O MUNDO DEPOIS DE TI)

“INCONSTÂNCIAS”

Acreditas que ainda hoje tenho saudades tuas? Todos os dias morro um pouco mais de saudades tuas; mas olha eles dizem que tu, onde estás, me vais acompanhando. Eles garantem-me que me vais acompanhando como se eu não fosse a pessoa céptica que sou e eu deixo-me acreditar porque dói menos. Dói menos se acreditar que andas algures a fazer as tuas traquinices e a derrubar as jarras bonitas de alguém. Hoje gostava que ainda derrubasses as nossas jarras bonitas.

Consegues acreditar que todos os dias morro um pouco mais com saudades tuas? Vejo-te pela casa fora como se na casa ainda estivesses e ainda te chamo sabendo que não me podes ouvir. Talvez possas. Eles dizem que me podes ouvir e que de alguma forma me vais responder. Eles dizem que me respondes nas pequenas lembranças que tenho de ti sempre que morro mais um pouco com saudades tuas. Dizem que não é uma morte, sou eu a viver e eu tenho tanta vontade de lhes dizer que se a vida é isto eu quero desistir agora.

Mas desistir não é uma grande solução depois de se chegar aqui. Quando se chega aqui tem que se seguir mesmo que não saibamos o que quer que seja que estejamos a fazer. Na verdade acho que quanto mais vivemos, quanto mais anos contamos menos sabemos o que fazemos. – É engraçado que quanto mais adulta me chamam menos certeza tenho de ser adulta porque vou seguindo com passos pequenos e tateando os móveis como se numa casa na escuridão.

A escuridão parece não significar muito para eles, mas eu lembro-me sempre mais de ti quando estou na escuridão e tenho que me interromper a mim mesma para me lembrar que a escuridão é só a outra parcela da claridade. E a claridade eras tu pela manhã a dar-me os bons dias, a atrasar-me para a universidade com os teus mimos demorados de quem sabia que o dia ia custar a passar. Juntavas os mimos como se junta o lanche no saquinho e deixavas-me levá-los para me lembrar que tinha para onde voltar. – Nos meus piores meses de desespero tu eras a minha casa sem ninguém saber porque ninguém conseguirá saber. Eles riam muito quando falava de ti e eu nunca me calava acerca de ti.

Hoje não me calo acerca de ti. Nunca me calo acerca das minhas saudades de ti e eles ainda riem mas agora não importa muito. Nunca importou muito porque ao final do dia tu estavas já á minha espera no cimo das escadas, a expressão de quem esperou um dia inteiro para poder respirar fundo. Também eu esperava o dia inteiro pela serenidade que era ver uma face demasiado conhecida, pelo sentir-me despida do fardo que é ser normal para quem pouco compreende da anormalidade que é ser-se humano e até aí tu me oferecias aquele olhar especial. Aquele olhar com que uma amiga nos presenteia acompanhado de um sorriso suave e uma nota de compreensão, um: “sim, eu sei, o mundo lá fora é turbulento.”

Era mesmo. É mesmo, o mundo cá fora é turbulento. É cheio de lobos que me caçam sem que eu que esteja pronta para me defender e eu demoro a levantar-me dos meus joelhos. Demoro a aprender a mostrar-me também lobo quando tu sabes, tu sabes que sou demasiado simples e lunática para estar sempre atenta. O teatro social pesa-me nas costas como a tua falta me pesa no peito e no sono. – Faz-me por vezes acordar, faz-me por vezes chorar. Chorar como se não chorasse faz anos. E tu sabes que faz anos, que eu prometi que o desespero não me ia tomar de novo como naquelas noites em que te sentavas á minha beira e em silêncio repetias que tinha sempre para onde regressar. O mundo inteiro poderia odiar-me; o meu mundo estava ali e ali estava tudo bem. Porque só ali poderia estar tudo bem porque só ali estavas tu com os mesmos olhos da profundidade do mar como se olhasses para lá de mim e para lá de mim me tentasses levar.

O mundo depois de ti não tem a mesma piada. Um ano passado e eu tenho a certeza que levaste uma parte do mundo contigo. A parte que era a minha certeza quando a depressão me roubou todas e quaisquer certezas. A parte que me garantia que podemos ter um minuto de descanso, um segundo de alívio do fado que sabemos perseguir-nos insistentemente. A parte que me falava de como o amor pode ser imensurável e ridículo. Porque quando eu disser que escrevo para uma amiga que tem bigodes grandes, duas orelhas espevitadas e olhos redondos e atentos muitos me vão achar ridícula. Mas os melhores amigos não se negam no medo e tu ensinaste-me mais acerca do medo do que eles vão alguma vez conseguir. – O medo de te perder que se tornou real numa noite de Janeiro.

Eles dizem que eu não te perdi. Dizem que vais estar sempre á minha espera porque é isso que os melhores amigos fazem. Dizem que eramos demasiado especiais. Mas, como um hábito que se tem desde sempre, eu ainda espero ver-te saltar para a minha cama, ainda espero sentir-te perseguir-me pela casa fora, ainda pareço ouvir as nossa conversadas animadas que mais ninguém compreendia senão nós. Eles dizem que não te perdi mas dói todos os dias como se o tivesse feito.

Acreditas que ainda hoje tenho saudades tuas? Cuido daqueles que me enviaste com o maior carinho mas esse carinho foste tu quem mo ensinou. Cuido de mim nas noites em que o desespero é novamente maior que eu lembrando-me que não gostavas do meu desespero e que tinhas razão quando dizias que estava tudo bem. Ainda hoje morro mais um pouco com saudades tuas e acho que as saudades tuas nunca vão passar.

Os meus caros leitores vão achar que a minha sanidade colapsou de vez e eu nem me sinto culpada, querida amiga. Sinto apenas que hoje o amor pesa muito e eu não consigo carregar o seu peso sozinha. Sinto que o amor é demasiado maravilhoso pela forma simples como se ama, assim, sem sequer se questionar se esse amor parece bonito, compreensível, aceitável. O amor é. E se for ridículo, que o seja. Os meus caros leitores vão achar que o meu amor é uma hipérbole de mau gosto, talvez. Mas a eles devo dizer que nunca havia sentido hipérbole tamanha.             

Vou ter sempre saudades tuas e eles vão sempre dizer-me que tu estás a olhar por mim. Eu vou deixar-me acreditar porque dói menos e eles vão dizer que só pode ser assim porque nós eramos demasiado especiais.

Eu sei que somos demasiado especiais. Seremos sempre.