10 Junho 2016      21:08

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CANTO LÚGUBRE

Conheço-te, Portugal, há 10 anos. Em 2006, eu aportava no aeroporto da Portela com a previsão de cá permanecer até 2008. O destino, este gigante misterioso e apressado, entretanto, amarra-nos aos seus pés e arrasta-nos pelas vielas escuras por onde ele gosta de deixar os seus rastros largos e fundos. Estamos em 2016 e eu, apesar das curvas abruptas que me impôs aquele gigante, passei a te amar, Portugal.

Ainda que eu te ame, não aprendi a cultuar os teus mitos e a ver neles quaisquer sinais de maior heroísmo. Isto, porque eu sou um tataraneto de portugueses há muito esquecidos pela família que remanesceu ali, pelas bordas do Minho. O meu sangue já é mais indígena que branco e eu tenho ancas amolecidas pela africanidade da minha vizinha. Sou como um galho distante da raiz da árvore ibérica, um daqueles estrangeiros que, ao chegar aqui, reconhece na cara de um velhote o semblante do tio Amando, ou entrevê uma prima bonita no sorriso da atriz da TV. Há um parentesco, porém as coisas não são assim tão simples.

Entre o sangue e a História há uma ponte curta e foi diante dela que o destino me deixou, depois de me levar por tantos lugares. É por esta ponte pequenina que eu caminho agora, e eu não estou só. Acompanham-me aqueles tataravôs, mais uma multidão de indígenas com línguas e modos díspares, além da vizinha afrodescendente. Uma vizinha banto, com formas arredondadas e a pele cheirosa. A sua voz firme por entre os dentes que reluzem dita-me muitas lembranças. Muitas dores, Portugal, muitas dores. A multidão indígena, por sua vez, chora num cântico fúnebre a ecoar pelo rio Tejo, reconhecendo o odor da madeira da caravela, o mesmo cheiro acrimonioso que lhes invadiu, Bahia a dentro, as ocas e as carnes. São muitas as dores.

Dores que fazem os meus tataravôs chorarem de remorso. Daqui, no meio desta ponte frágil e estreita, eu escuto chorar também toda a sua enorme descendência, a minha parentela. Hoje, especialmente, sentimo-nos todos um pouco mais consternados e não nos reconhecemos nos mitos que te faz celebrar, Portugal. As tuas glórias navegam nas nossas lágrimas, ainda que nelas evites banhar-te.

O amor sincero que sinto por ti não oblitera a memória da tua avidez cruel. Ainda rodopiamos sobre o tabuleiro de miséria e de desencanto que de ti herdamos. Este é o mal maior do parentesco: herdamos o ouro e as dívidas. Morremos por estas ou por aquele. Herdamos também de ti esta melancolia, disfarçamo-la com o batuque e o chocalho, entretanto, ela ainda está cá dentro, a corroer-nos enquanto sonhamos.

Sabemos bem que tens as tuas próprias feridas abertas, Portugal, ainda que hoje seja esperado de ti que as abandones em privilégio da alegria um tanto débil de um qualquer nacionalismo. Nós também cometemos este erro: tentamos apagar, com bandeirolas e demagogias, as pegadas fundas e largas do que era destino e agora é memória. Neste dia, é suposto que uns tantos homens te adocem a alma com palavras bonitas, a acenderem candeeiros pelos corredores esfumaçados à tua frente.

Contudo, se queres saber, faz como te ensinam: marcha com as mãos ao ar, a cabeça erguida, a face molhada de lágrimas de júbilo. Consolamo-nos também com fantasias como estas; ao menos, por elas, aprendemos a tornar amigos os homens e mulheres com os quais dividimos tão somente a terra onde pisamos e a linguagem. É tudo símbolo, placebo, ilusão. E assim vamos, porque não nos deixam escolher outras vias de nos mantermos unidos. É violento o mundo que ajudaste a construir, Portugal.

Eu, ai de mim, equilibro-me nas cordas rotas que sustentam esta ponte que atravesso acompanhado de tantos brasileiros. Respeitosamente, neste 10 de Junho de 2016, virarei as costas ao teu ritual. Faço-o porque amo-te a ti e ao teu gozo tênue, à tua esperança breve e ao sentido que dás à tua trajetória. É legítima a tua festa, só não te esqueças de que os teus mitos distribuíram pelo planeta mais mazelas que alegrias.

Eu, ai de mim, amarei a ti para sempre e plantarei neste teu chão resmas de orgulho e de dores – e são tantas!

Quando o destino outra vez amarrar a tua corrente inquebrantável às minhas pernas e me arrastar novamente pelos anos a fora, terás a certeza de que há razões para certas venturas. Para além das celebrações, valerá muito mais a transcendência dos reencontros, visto que deles resulta sempre o expurgar de passados conturbados, alheios aos encantos forjados nas rememorações ufanistas.

Dos reencontros promovidos pelo destino apressado e misterioso renovam-se as velhas amizades e os longínquos parentescos. É o que me sussurram agora aqueles tataravôs, filhos teus (lembras-te deles, Portugal?), nesta hora grave e pouco iluminada deste dia 10 de Junho. Eles pedem-me ainda para que eu te abrace com ternura. Assim o faço, a ouvir o cantar lúgubre das almas brasileiras que me rodeiam.

Imagem de capa daqui.