26 Fevereiro 2016      23:28

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A CAIXA

"PARALELO 39N"

A Carlota era filha única e tinha uma caixa guardada debaixo da cama. Carlota não contava a ninguém o que guardava na caixa. Era de madeira lacada e tinha um cadeado. Só Carlota tinha a chave e só Carlota conhecia os segredos da sua caixa. Não era uma caixa de Pandora nem guardaria todos os males do mundo. Era uma simples caixa onde se guardavam os segredos de infância, as recordações da adolescência e os sonhos do futuro que se esperavam melhores ainda do que o planeado.

Carlota entraria para a universidade nesse ano. Completava o 12º ano, numa escola do sul do país, perto de Beja. Carlota não era uma adolescente diferente das outras da sua idade. Partilhava dos mesmos gostos, vestia-se da mesma maneira, tinha as paixões pelos mesmos ídolos, gostava dos mesmos rapazes da escola de quem gostavam as outras amigas e ouviam todas a mesma música. Todas tinham uma caixa onde escondiam o diário, as memórias da infância e os sonhos do futuro. Na linha que é a nossa vida, podemos sempre esconder na mesma caixa o passado, o presente e o futuro. Tudo cabe numa caixa onde o mundo se acomoda. Carlota, à noite, depois de chegar da escola, de passar a tarde a olhar para os livros e cadernos, umas vezes por vontade, outras obrigada pela mãe, via televisão, jantava com os pais. Fazia-o meio à pressa porque a telenovela, que não perdia, ia começar e havia, depois, o Whatsapp, o Messenger, o Facebook e essas coisas todas que não guardava dentro da caixa. Era um mundo presente que não cabia lá. Ouvia música no Spotify e deliciava-se com os vídeos do Youtube.

Depois de tudo, voltava ao mundo presente e real e olhava para a chave pendurada no fio que trazia ao pescoço. Hesitava uns segundos e pensava que talvez, nesse dia, não valesse a pena escrever muito ou até olhar para a caixa. A tentação seria sempre grande, como se fosse algo proibido que não podia fazer, mas tinha de, obrigatoriamente, conhecer, explorar. Abriu a caixa e, em cima de todas as outras coisas que eram ideias e memórias e inocências da infância, tirava um diário feito à mão, que fora desenhado nos primeiros anos e escrito em tipos de letra que marcavam a gradação da vida e as idades do seu crescimento. Agarrava na caneta e escrevia as coisas que a tinham impressionado nesse dia. Escrevia as conversas que tinha tido com as amigas e desenhava os símbolos das aplicações da internet. Não tinha jeito para escrever romances, mas conseguia, com uma voz intocável, reproduzir os êxitos pop que ouvia diariamente. Havia de cantar em grandes palcos um dia, diziam-lhe as amigas, mas ela não acreditava muito nisso.

Carlota fechou o diário e viu os ficheiros que estavam guardados debaixo do diário, das memórias e dos sonhos. Debaixo estavam folhas secas, preservadas pelo tempo e flores que marcavam páginas de livros que iria ler ainda. Na vida de Carlota tudo era simples e se podia guardar na simplicidade de uma caixa de madeira lacada que lhe tinham trazido os pais de Birmânia, na sua viagem em trabalho, há muitos anos atrás.

A caixa fechava-se aos gestos de Carlota e arrumava-se debaixo da cama, também às ordens de Carlota. Pareciam uma só quando se olhavam. Inerte, no canto marcado pela falta de pó, a caixa adormecia ao mesmo tempo que a sua detentora e absorvia todos os sonhos dessa noite.  

 

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