25 Março 2016      12:55

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A BELEZA NOS RUÍDOS

“MENOS ESTRANGEIRO”

Há mais de dez anos, quando eu descobri a antropologia, percebi que os meus olhos e ouvidos estavam preparados para os desafios da profissão. Ao antropólogo, cumpre enxergar e decifrar o que está mais escondido. Um profissional desta área não deve deixar-se levar exclusivamente pela intuição, nem pelo senso comum. A sua compreensão sobre o que ele vê e ouve precisa de ser posta à prova junto aos seus intervenientes. Estes vão confirmá-la ou negá-la, e os resultados desta interlocução definirão os rumos da sua investigação antropológica.

Sucede uma troca constante e sincera entre mim e as pessoas com quem interajo. Nesta relação de reciprocidade, guardo algumas anotações e jogo outras fora. Há ainda aquelas notas que ficam reservadas numa espécie de baú repleto de informações que, embora não sirvam à ciência social que pratico, são de grande utilidade para uma outra elaboração que faço do mundo. Diáfanas, estas tornam-se em versos ou em estórias e passam a ornar os meus sonhos acordados, naqueles dias em que o ócio permite alguma contemplação interior.

Uma dessas informações tem muito a ver com os sons corriqueiros produzidos no quotidiano. Nas cafetarias, por exemplo, as batidas fortes que ouço entre a feitura de um café e outro são verdadeiras músicas para os meus ouvidos. Talvez eu lhe tenha feito sorrir com esta esdrúxula alusão à violência inocente dos empregados dos cafés.

Porém, explico-me: cada intensa estalada aguça os meus sentidos, na medida em que as vozes dos demais presentes têm que aumentar de volume para que as suas conversas se sobreponham ao barulho metálico que faz a borra cair no saco de lixo. Ah, que enorme euforia quando das pancadas sobressaem palavras soltas, risos libertos, calões e nomes próprios amiúde! As conversas arvoram-se, quando os estrondos ocorrem.

Normalmente são duas batidas, nada além de dois ou três segundos espantosos. Tempo suficiente para que a discrição inicial dos diálogos se deixe trair e permita escapulir revelações imprevisíveis. Quantos pedaços de segredos escapam, quantas piadas! Quantas alegrias e quantos dramas sobrevivem à pancadaria e se juntam ao aroma do café a encher o ambiente! As vozes e os sopapos formam minúsculas sinfonias capazes de me entreter por horas.

Imagino que muitos portugueses, habituados a estes sons desde muito cedo, não retirem deles nenhuma graça. Entretanto, amigo ou amiga que me lê agora, peço-lhe que viaje comigo nesta fantasia e perceba este dado que lhe ofereço: ao forâneo, os lugares costumam ser labirínticos. Subsiste no estrangeiro um receio de não vir a encontrar conforto e segurança longe de casa. Todo estímulo dos novos ambientes precisam de ser levados em conta, porque oferecem pistas que permitem transitar por caminhos a ele inauditos.

É em função desta minha disposição aventureira que os barulhos facilmente me dizem tanto quanto os silêncios. Em ambos, estão belezas escondidas, as quais, por regra, as gentes não querem ver ou valorizar, mas que podem traduzir-se em coordenadas de viagem. Muitas vezes, não me ajudam a encontrar saídas academicamente plausíveis. Contudo, momentos como estes vividos nas estrondosas cafetarias têm-me feito dançar pelos salões da inspiração poética, inebriando-me juntamente com o aroma do café que me aguça ainda mais os sentidos.

 

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