8 Janeiro 2021      08:44

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Assalto ao Capitólio? Que surpresa!

É de facto surpreendente que trinta mil pessoas se tenham juntado em Washington D.C. para participar num inocente comício de rua e de repente tenham marchado em direcção ao Capitólio e invadindo o dito cujo!

É surpreendente porque é algo inaudito, diz-se que a última vez que o edifício foi alvo de intrusão foi em 1814, pelo exército inglês quando este tentou reconquistar os Estados Unidos através do território do Canadá. E curiosamente, já os últimos invasores também usavam uniformes vermelhos!

Íamos nós lá agora adivinhar uma coisa destas! Nunca ninguém julgou possível que um lunático egocêntrico com um discurso divisionista, beligerante, colérico e boçal, que incitou durante quatro anos ao ódio de americanos contra americanos, criou fossos sociais com base em mentiras e estereótipos e, mais que tudo, normalizou o entrincheiramento, o clima de conflito permanente e o incitamento à violência, provocasse… violência! Quem é que poderia prever este resultado?

Podemos responder à questão inversa. Quem é que não conseguiu prever este resultado? Cuja resposta é: “Quem nunca pegou num livro de História”. E é assim mesmo que isto deve ser dito, em tom paternalista e sobranceiro.

Só quem nunca pegou num livro de História não teve os instrumentos intelectuais necessários para fazer uma conclusão tão óbvia quanto a “quem cultiva ódio, colhe violência”. Sempre assim foi, sempre assim será enquanto o mundo for comandado por seres humanos que, ao contrário de um robot, não deixam de ser animais, e em certos momentos, de medo, de pânico, de apoteose, de êxtase, perdem o sentido racional pois, os sentimentos extremos “desligam” o nosso neocórtex, e sem o neocórtex a funcionar, o ser humano não se comporta de forma diferente daquela como um chipanzé ou um gorila se comportaria.

Precisamente pelo ser humano possuir o seu lado gorilesco é que existem instrumentos que visam minimizar a nossa animalidade, como leis, normas, costumes, tradições, códigos, convenções, estatutos, mandamentos, doutrinas, por aí adentro. Quando se abrem cortinas nesses instrumentos dá-se o caos, todavia, nem todo o caos é negativo. Se não fosse o caos causado por Salgueiro Maia, eu não teria podido hoje publicar este devaneio. Se não tivesse havido o caos causado por ter abandonado um emprego que detestava, hoje não estaria num melhor. Se não tivesse havido o caos de repreender uma criança que tentou enfiar o dedo no olho do irmão, essa criança continuaria a fazê-lo. São três simples exemplos de caos construtivo, que destrói uma situação indesejada e constrói uma situação desejada para o bem comum.

Porém, o caos também tem poder para ser usado com o objectivo inverso, destruir uma situação desejada e construir uma situação indesejada face ao bem comum. Foi precisamente essa a cortina que foi aberta por Trump na passada quarta-feira, quando num comício de rua literalmente incitou a que a multidão marchasse “com ele” (spoiler alert: Trump marchou, mas para o seu sofá de casa!) até ao Capitólio para “parar o roubo” (seja lá o que for que isso significa), ora, estando a multidão em polvorosa, foi precisamente isso que aconteceu! Um presidente em funções, literalmente, pôs em marcha uma tentativa de insurreição contra o país a que preside! Diga-se que, tal coisa, normalmente é considerado traição à pátria, dos crimes mais sórdidos e graves que um político pode cometer.

E mais, Trump traiu quarenta homens e mulheres que deram a própria vida no dia 11 de Setembro de 2001 lutando contra os sequestradores do voo 93 da United Airlines, que se dirigia a Washington para se despenhar contra o Capitólio, que não aconteceu pela bravura dos passageiros do avião que provocaram a queda da aeronave pagando com a própria vida, para salvar outras tantas e o Capitólio como instituição da sua democracia. Trump traiu heróis da sua própria nação que se sacrificaram por ela. Para que assente.

Não vá algum leitor pensar que isto só acontece na América, que por cá na Europa somos mais sofisticados, devo dizer que a Alemanha de 1933 era uma democracia vívida, multipartidária, um país industrial, cultura sofisticada, ciência admirável, com imensos intelectuais de alto primor que, nesse mesmo ano, havia elegido um dos maiores facínoras da história da humanidade, que “dizia as verdades”, que “dizia o que outros não diziam”, que “falava com paixão”, que vinha “mudar e purificar o sistema”, e que tal e qual como os novos aspirantes a ditadores que por aí pululam, inclusivamente o português, prometia ao povo todas as vulptuosidades de Sodoma e Gomorra, o verdadeiro paraíso terrestre. Nem dez anos depois, o sangue e o caos corriam nas ruas, e etnias eram exterminadas a gás e a fuzil. E no final, o seu regime “vulptuoso” terminou como Sodoma e Gomorra… em cinzas.

E para quem possa ainda surpreendentemente estar com dúvidas podemos dar o exemplo de um pequeno tubo de ensaio que tivemos por cá, no nosso burgo, esse dito país de brandos costumes. Quando um populista aspirante a ditador de futebol, durante cinco anos, inflamou as hostes a seu belo prazer até que, quando o seu pequeno regime de fantasia se começou a desmoronar, a retórica violenta subiu de tom e resultou também na sua própria “invasão ao capitólio”.

E desengane-se quem pensar que clubismo e nacionalismo são circunstâncias distintas, quando são exactamente a mesma circunstância mas, em roupas diferentes. Ambos são sentimentos tribalistas que desencadeiam e destapam no ser humano o seu lado mais primário e mais animal, o tal gorila que habita dentro de nós e que não perde uma oportunidade para se mostrar ao mundo.

O cérebro humano é “hackeável”, por isso, instalemos o melhor antivírus do mercado…

O livro de História.

Imagem de capa de Win McNamee