20 Abril 2016      21:14

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AS ONDAS

"PARALELO 39N"

Arrasada pelas notícias repetidas, caluniosas, degradantes e falsas que saíram nos últimos dias nos jornais acerca dela e do seu desempenho nas funções políticas que desempenhava, Linda refugiou-se no gabinete e olhou vezes sem conta para os excertos dos jornais que a ela diziam respeito. Era tudo tão pesado e agressivo. Uma agressividade nas figuras a cores que ganhava uma cor encarnada como se de sangue se tratasse. Nem um entre todos os jornais continha uma única palavra em que se referissem as suas qualidades, os seus gestos, a sua obra feita. Se algo negativo e denegridor houvesse, lá estaria.

Ao lado, uma folha pronta a assinar com a sua renúncia ao mandato. Linda sabia-se inocente. Linda sabia que o esquema fora montado para que tivesse de sair. Há favores, pensava, que se não forem feitos, pagar-se-ão caros. A mulher que ali se sentava naquele cadeirão, o mesmo que representava o poder, estava vazia de forças e já não tinha poder. A sua força anterior, o deslumbre das câmaras de televisão, dos flashes, as multidões a gritar o seu nome, as suas promessas de fazer diferente, de ser outra, tudo caiu por terra. Há favores que, se não forem feitos, pagar-se-ão caros.

Linda tinha, até aí, marido e filhos que faziam deles a família perfeita. Depois, as primeiras capas de jornal. As primeiras acusações feitas no primeiro jornal. No segundo dia, a replicação de negócios ilegais, de favorecimento, de dinheiro lavado e passado a ferro, tudo e tanto. Linda nem acreditava naquilo que tinha permitido que acontecesse nas suas costas. Não sabia, foi negligente e arrependia-se de não ter visto o que estar à sua frente. Confiara em toda a gente. Toda a gente usara a sua confiança. Linda viu, a cada capa, um membro a afastar-se de si. Acusações de todo o tipo já mencionadas, fragilizavam e estilhaçavam o amor que teria havido entre si e o seu marido. Os filhos, sem que o assumissem, afastaram-se da mãe e nada foi igual ao que tinha ou poderia ter sido. Mas, Linda, ainda assim, era forte e sentia-se todos os dias uma guerreira que seria capaz de suplantar todas as vicissitudes. Nada daquilo que era a política poderia fazer dela uma derrotada. Todos os seus assessores lhe tinham dito isso mesmo e ela acreditou. Hoje não acreditava. Acreditar é um verbo forte, tão forte como crer. Nenhum deles já fazia parte do vocabulário de Linda.

No centro da sala, uma pequena mesa com os jornais e as revistas espalhados. Eram todas as facas e todas as armas perigosas ainda que não passassem apenas de um pedaço de papel impresso a cores. Ao lado, uma folha de papel branco, timbrado, com a arma mais poderosa de todas, uma caneta de tinta permanente que Linda tinha usado já tantas vezes para usar o seu poder. Fê-lo sempre de forma justa, dizia a si própria. Os seus assessores que, até esse dia, lhe diziam sim e concordavam no sim, não estavam lá. As decisões agora eram solitárias. Tão só como Linda neste momento.

Vestia um fato de duas partes, em bombazine, azul como as ondas do mar e ornamentava-o com o melhor ouro que sempre tinha usado como sinal de bom gosto. Linda tinha saltos altos e batia o tacão nervosamente no chão, tentando adiar a decisão, como se tal fosse possível. Na mala castanha, em pele, o telefone tocou e ouviu-se uma voz rouca que lhe disse que é o momento. Assina.

Após desligar o telefone, Linda assinou o papel que tinha na sua frente, fechou a caneta, agarrou na mala e levantou-se. Desceu as escadas vazias e dirigiu-se à porta onde já nem o motorista a esperava. Nervosa como nunca se tinha sentido antes, ligou o carro e conduziu até à beira mar. Estacionou o carro num dos lugares do parque junto às dunas. Todos estavam vagos. Deixou a mala no carro, fechou a porta do carro e caminhou em direção ao mar A areia estava fria e via-se uma neblina suave no ar. Linda tirou os sapatos e caminhou em para as ondas. Aquele azul tão forte, tão grandioso como o seu casaco, deixava de o ser e acabava numa orla branca junto a si. Olhou para trás, limpou uma lágrima que caía pelo rosto abaixo, sem saber se era do frio ou da sua profunda tristeza.

Entrou na água e, desde logo, se confundiu com as ondas. Os seus cabelos brancos passaram a ser a orla e não mais as ondas se diferenciaram do fato. Naquele momento Linda passou a ser o mar e as ondas e não mais voltou. 

 

Imagem daqui