9 Julho 2016      10:13

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ARROZ DE TAMBORIL

"PARALELO 39N"

Era um domingo normal, como qualquer domingo que seja passado em casa e em família. No céu uma ou duas nuvens quebravam a monotonia do azul e deixavam antever um dia não muito quente, sem ventos fortes nem possibilidades de aguaceiros. Na casa número 134 da rua da Agonia, uma casa estreita em frente mas longa em comprimento para a parte de trás, onde ainda tinha um jardim amplo, onde estavam duas oliveiras, um limoeiro, um pessegueiro e duas laranjeiras. Fazia lembrar a forma como as casas holandesas se distribuem na cidade. Vi isso pela primeira vez em Malaca. Numa rua, todas as casas estreitas na sua frente, mas vastas em comprimento. Era quase como se quisessem enganar quem as via à distância, não parecendo que escondessem um mundo atrás de si.

Então, nessa casa, no número 134 da rua da Agonia, saía um cheiro bem agradável pela janela da cozinha. Talvez fosse aquele cheio que mistura o refogado com coentros, cebola alourada e uma pitada de piri-piri com o peixe que se aloura, ele também dentro do tacho. Talvez fosse o louro ou os alhos no azeite ou mesmo o arroz e o vinho branco que, em contacto com o camarão e o tamboril deixavam de água na boca todos os vizinhos a quem o aroma do petisco chegava ao nariz e ativava as pupilas gustativas.

A senhora Maria cozinhava muito bem e o tacho era tão grande quanto o apetite dos convidados. Quem vinha lá? Quem chegava à hora certa àquele número daquela rua? – pensavam as vizinhas coscuvilheiras da mesma rua e de quase toda a vila. A resposta eram os sobrinhos que moravam em Lisboa e costumavam vir visitar a família à terra. Foram buscar a sua mãe ao lar da terceira idade e vieram depois até à casa da senhora Maria. O marido, Heitor, andava ainda a apanhar umas laranjas e uns pêssegos para a sobremesa. Tudo criado no quintal e com dedicação de quem, por esses dias fazia dos pequenos trabalhos um grande ofício. A senhora Maria fora cozinheira toda a sua vida, não por profissão aborrecida e forçada mas por gosto e dedicação. Habituada a cozinhar em grandes quantidades, nenhum dos pratos perdia o gosto que teria se fosse para duas ou três pessoas apenas. Hoje eram 10. Ela, o marido, os dois filhos, a irmã que vivia no lar, o sobrinho, a mulher e os três filhos.

Ainda não era bem uma da tarde quando a carrinha monovolume estacionou perto da porta que se abriu com a excitação de ver alguém que se ama e acarinha à distância sem poder, em todos os dias do ano, demonstrar esse amor num abraço ou num simples beijo no rosto. Mas ele existe e está lá. Vai ficando mais forte e cristalizado à distância.

Senhora Maria acabava os petiscos e as entradas enquanto senhor Heitor punha a mesa e procurava, na adega, aquelas garrafas de vinho que tinha comprado em Pias, para oferecer o melhor à família. Sempre o melhor para aqueles que estimamos. Sempre um toque de carinho para aqueles que pouco vemos e, quando vemos, parece que não passaram dois dias desde a última vez. Da cozinha continuava a chegar o cheio agora totalmente apurado do tamboril, dos camarões, do arroz, de todos os condimentos e do vinho branco onde tudo foi cozido.

O sabor seria ainda mais espantoso mas, esse, resta-nos imaginar e deixar que o nosso apetite aumente e cresça água na boa. Umas horas depois, sem nenhuma desilusão no sabor nem nada dentro do tacho, a mesa parecia outra e as conversas tinham navegado, como um tamboril livre no mar, entre os problemas, a saúde e as memórias de infância de três gerações. As garrafas, vazias e dos pêssegos e das laranjas só os caroços e as cascas.

Fizeram-se, antes das cinco, as despedidas, um adeus até à próxima e um acumular de saudades no entretanto. Partiram as visitas e ficou o cheiro do arroz de tamboril ainda a pairar na casa. Afinal, este era um domingo normal no número 134 da rua da Agonia.

 

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