1 Maio 2016      09:18

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A MINHA MÃE

"INCONSTÂNCIAS"

A minha mãe ensinou-me muitas coisas – grande parte delas ainda nem as consegui compreender bem. Sei que um dia o vou fazer e lembrar-me que foi a minha mãe que me as ensinou. – É assim que as mães funcionam e é por isso que são mães. Trazem no regaço as soluções para problemas que ainda nem sequer enfrentámos e, sem nos apercebermos, deixam-nos gestos a lembrar-nos que não existe prazo de validade para a sabedoria que as mães nos deixam.

As mães são sempre. As mães são em qualquer medida, mesmo na não medida. As mães são em qualquer tempo, mesmo no tempo em que já não são e é por isso que as mães são mágicas. Seguem-nos com um olhar que não vimos mas que nos vê sempre. Seguem-nos até quando não nos deixamos seguir e deixamo-nos seguir sem saber. É assim que as mães trabalham: na medida mais complicada que é aceitar que uma hora há-de chegar em que têm que ser a transparência no nosso ombro.

A minha mãe ensinou-me muitas coisas mas nem sempre essas coisas foram mãos suaves a passar pela minha cabeça ou pelas minhas costas: muitas vezes foram tudo menos suavidade. Muitas vezes foram feridas abertas em que esfregava sal impacientemente porque eu ainda não compreendia que doer era a solução (porque doer até esgotar é muitas vezes a solução). Perdi a conta aos momentos em que as coisas que a minha mãe me ensinou chegaram a mim como palavras que pareciam quase cruéis. Gestos quase ferozes.

Mas era apenas a forma como elas chegavam a mim. Era apenas o meu olhar a ser demasiado jovem para compreender que ser mãe dói muito, tanto ou mais do que as alegrias que deixa, e que a dor é a principal base para a sabedoria. Era apenas eu a não ser suficientemente grande para compreender que a comunhão contínua, a comunhão mística de ser um para lá da vida que existe entre nós e as nossas mães precisa de dor para ser perene e completa.

A ferocidade da minha mãe era a pressa de me fazer viver, de me dizer que a vida é um decorrer quase desmesurado de acções e reacções e não obstante o mundo cair muitas vezes no dia seguinte está sempre lá. Porque as mães também estão lá no dia seguinte. A ferocidade da minha mãe era a sua forma de me aconchegar no seu colo quando o meu corpo começava a ser grande demais para o seu colo e eu achava que nunca mais ia precisar do seu colo. Era o medo, era o amor, eramos nós a acontecer na penumbra do amor e do medo.

Ela tinha sempre razão. A minha mãe teve sempre razão quando me quis no seu colo e eu fugi, pequeno tigre embriagado pelos milagres precoces da vida. Mas ela deixou-me sempre ser tigre e ser embriagada. Deixou-me sempre traçar trilhos por onde o meu peito queria e viu-me sempre cair, quando caía. E quantas vezes não caí…Quantas vezes não corri de novo para um colo de lágrimas de solidariedade mesmo quando o meu corpo já era demasiado grande. A minha mãe esteve sempre á minha espera, a minha mãe ainda não deixou de esperar por mim e essa é a virtude das mães. Uma paciência infinita ainda que o coração seja mais ansioso.

Lembro-me sempre, ainda que em silêncio, da forma como a minha mãe caminhou pela vida dela e pela nossa. Como levou a casa às costas, e o mundo às costas, e a dor às costas e nunca se cansou verdadeiramente. Lembro-me das lágrimas engolidas e do desespero desmedido que lhe via nos olhos e lembro-me como ela me ensinou a ser forte. No silêncio. Como a minha mãe me mostrou que o mundo quer de nós uma face para bater e esquecer, pernas fortes que abanam e enfraquecem mas fazem sempre caminho. No silêncio, a minha mãe mostrou-me que o mundo não nos quer princesas bem comportadas – o mundo quer-nos guerreiras dispostas escorrendo sangue mas nunca tremendo. A minha mãe ensinou-me que as pequenas mortes são uma vitória, não uma lástima. E por ela e com ela eu renasci tantas e tantas vezes.

É esta a forma como as mães nos dizem: amo-te. No silêncio da sua própria dor e do seu desespero, no engolir da sua própria dor e do seu desespero. E eu lembro-me sempre de como a minha mãe foi forte quando preciso ser forte.

Não fomos fáceis, eu e a minha mãe. Nós nunca fomos dessas mães e filhas que são sempre juntas, que nunca se aborrecem e olham sempre na mesma direcção. Frequentemente disputávamos ideais e vontades e parecíamos ser separadas. Frequentemente eramos berraria a acontecer, feras de corpo enorme. Mas até aí eramos amor. Até aí eramos um amor ainda maior porque depois de vozes altas e palavras desmedidas existia a vontade comum de nos salvarmos uma á outra. Não fomos fáceis porque precisávamos de aprender que não era necessária a facilidade para sermos grandes. Para que o nosso amor fosse grande.

A minha mãe ensinou-me que os caminhos difíceis são aqueles dos quais nos vamos orgulhar mais de ter caminhado e saber isso ajuda-me hoje a ser difícil e orgulhosa da dificuldade.

É esta a forma como ela se escreve em mim – com uma nota de felicidade afectada de quem já atravessou junto o inferno e o céu.

Hoje, confesso, existem ainda tantas coisas que a minha mãe me diz que eu não vejo. Existem ainda tantas notas de dor e berrarias desmedidas a viver. Tantas notas de coragem a precisarem de existir e tantos momentos que sinto precisar de colo. – É essa, também, a capacidade que só a mãe tem: fazer-nos sentir pequenos e simples quando somos já grandes e obtusos. – Tantas lições que precisam de ser compreendidas e tanta paciência que precisa de ser trabalhada. Tanta gratidão a mostrar que nem uma vida inteira chegaria.

Esta é a minha nota de gratidão para a minha mãe. A minha mãe de pele escura, de olhos profundos e de cabeça erguida. A minha mãe quase personagem mítica que se faz acompanhar da fénix e da espada afiada. A minha mãe que enfrentou o perigo de mil medusas pela minha oportunidade de continuar a caminhar. E continuar a caminhar é aquilo que eu faço, todos os dias, mesmo que não tenha vontade porque me lembro sempre de como a minha mãe foi forte. E por ela, com ela, depois dela eu sou e serei forte.

Esta é a magia da minha mãe: ser capaz de me fazer melhor a cada lição que eu ainda nem compreendi e compreender, sem reservas ou julgamentos, que antes serei sempre pior.

 

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