18 Junho 2016      09:50

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A MARCA D’ÁGUA

"PARALELO 39N"

No leito da morte, a mulher que tinha vivido mais tempo que todos os que nasceram depois dela, sentia-se pronta a abandonar as dores do corpo físico. Não tinha já nada mais a fazer no círculo que se tornara a sua vida. Deitada na cama, tapada com as mantas que ela própria fizera e tecera ao longo dos muitos anos em que pode trabalhar, custava-lhe a respirar. Os seus olhos azuis já quase brancos até na menina, afetados pelas cataratas tinham dificuldade em ver fosse o que fosse. Viam apenas as sombras que, naquele dia, se movimentavam mais do que em todos os dias anteriores. Viam apenas o que depois imaginava serem os rostos que se lembrava. A pele, tão pálida e enrugada, própria de quem não vê o Sol há anos, mostrava longos riscos azuis, que não eram mais do que as veias. Não era de sangue azul mas podia ter sido. As suas raízes talvez tivessem sido nobres há muitos anos. Os netos tentaram provar isso mesmo, durante anos e muitos dias em arquivos.

No leito da casa que sempre habitara, no leito onde sempre dormira, a mulher que já não conseguia ver os rostos e os corpos com traços definidos, não ouvia também os sons que os que a acompanham nesta hora difícil, talvez a mais fácil para si por se separar finalmente das amarras que a prendiam. A mulher continuava a respirar dificilmente e procurava só adormecer pacificamente.

Na mão, uma carta enrolada com uma marca d’água que se distinguia. Era um papel que a mulher não largara nunca nestes dias em que se acomodara já no leito. No último suspiro, a carta continuava nas suas mãos como se fosse, entre todas as coisas de uma vida de mais de cem anos, a mais preciosa. Nunca os seus filhos, netos e bisnetos tinham visto tal carta antes e dela nunca tinham ouvido falar. Todos estavam curiosos em conhecer o conteúdo do papel com a marca d’agua. Dias depois, quando a dor apaziguara, a filha mais velha agarrou no papel e sentou-se na escrivaninha da mãe. Abriu a carta com a marca d’água e começou a sentir as lágrimas a escorrerem pelo rosto abaixo sem saber muito bem se pela saudade profunda que sentia e pelo amor à sua mãe ou se pelas palavras que lia no papel envelhecido pelo tempo.

Era a primeira carta de amor escrita pelo seu pai. Pai que nunca conhecera porque morrera quando era bebé e nesses tempos não guardava ainda memórias. Sabia que tinha sido tão amada como fora a sua mãe mas nunca lera ou sentira nada que lhe provasse isso mesmo. Nestas palavras inscritas na carta que tinha sido guardada até aos últimos momentos da vida da sua mãe, todas as respostas que nunca tinha tido na intensa busca que fizera.

As primeiras palavras de amor, o gesto de um homem profundamente apaixonado na marca d’agua. Ainda se sentia no papel o cheiro a rosas que acompanharam a vida da mãe e da família. A caligrafia, tão alinhada como as histórias que a mãe lhe contara do pai, eram a melhor fotografia do homem que fora. A filha era a mistura dos dois, era o conjunto mais belo dos dois. Ela e os seus irmãos. A beleza de uma vida e das memórias, dividida entre todos em igual proporção. A carta era o seu registo de nascimento, a sua marca de nobreza de alma, o seu brasão.

Leu a carta toda até ao fim, leu o papel que guardava já o suor da sua mãe, as impressões digitais do seu pai e, agora, as lágrimas que deixou cair em cima da tinta permanente e se juntariam na marca d’água. 

 

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