27 Outubro 2018      13:00

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Ã

Hoje, que não é hoje, apetece-me escrever um texto sobre algo muito específico. Não que aquilo que tenho escrito anteriormente não seja sobre algo muito específico, mas isto é mesmo sobre uma particularidade. É sobre o Ã. O Ã era uma personagem que fazia parte dos meus textos. Ele vivia numa terra longínqua, onde o céu já não via nuvens desde que os tempos se conheciam.

Imaginemos, antes de continuar a narrativa, este lugar. Era um deserto. Nada nascia, crescia ou nele prosperava. A diferença entre a aridez do chão e a do céu era a sua cor, desde um castanho argiloso, sem a água que transforma o pó em barro, com o amarelo tórrido daquilo que em tempos terá por ali havido, e o azul do céu que não dá alimento nem traz vida. Um azul que seria azul, não era nada.

à vivia no chão, no meio. Não vivia no céu, embora estivesse meio presente, vistas bem as coisas. Teria nascido por volta do ano 788 depois de Cristo e vivera mais de 300 anos, dizia-se. Pelo menos ficara assim marcado em documentos encontrados, muitos anos depois. Poderia ter sido alguém irrelevante, que não ficasse na história do lugar onde nascera e nem alguém que ficasse na história do Mundo. Muitos dessa sua época ficariam pelo caminho, sem notoriedade. à era diferente. A sua aventura começa na escolha do nome. Os pais andaram indecisos sobre o que chamar ao recém-nascido. Eventualmente acabaram por decidir-se.

A forma poderá até chocar os mais sensíveis, não crentes de curandeiros ou feiticeiros. Na terra desértica onde nasceu, à era a primeira criança que nascia, passados muitos anos. Os pais quando o conceberam teriam 99 anos cada. Pensava-se que, passado o século, já ninguém conseguia procriar. Os pais de à tinham conseguido fazê-lo nascer mesmo a tempo. O ano de 788 ficaria assim marcado pelo seu nascimento.

Quatro meses depois do nascimento, ainda não tinha sido possível encontrar um nome conveniente. A mãe sugeriu que fossem ao oráculo, o curandeiro que não falava, no único oásis que havia. O oráculo aí morava porque toda a gente tinha medo das bruxarias e pensavam que, se o irritassem, ele lançaria um feitiço e faria com que a felicidade deles fugisse para sempre. Não o fez, apenas guardou para si toda a água do mundo. Naquela terra, quem queria beber, pedia ao oráculo que não falava. Não tinha aprendido a falar. Não que tivesse algum impedimento. Tinha era começado a falar muito cedo por telepatia e interiormente com os deuses. Não falava a língua dos mortais. Ainda assim e sabendo de antemão, os pais decidiram ir consultá-lo, quem sabe se para cair nas suas graças e ter alguma água. O oráculo seria o padrinho do seu filho.

A medo, porque era assim que tinha de ser, o pai de à partiu, com a mãe, ladeados pelo cão escanzelado que era o amigo mais fiel. Também tinham um gato, mas esse ficou deitado à sombra da parede de taipa, a ver se algum escaravelho, gafanhoto ou inseto indiferenciado se aproximava. Era o que mais comia.

Pai e mãe levaram o à com eles. Dali até lá era mais ou menos meio-dia de caminho. O Sol acompanhou-os e isso tudo deve querer dizer que andaram de este para oeste. Quando chegaram, já o oráculo sabia que vinham. Era normal, adivinhava as coisas. Muitos receosos, perguntaram ao oráculo se se podiam aproximar. Abanou que sim com a cabeça. Depois, perguntaram se queria ser padrinho do seu filho e ele abanou que sim com a cabeça.

Por fim, perguntaram que nome queria dar ao seu filho, uma vez que não conseguiam decidir-se. O homem que tinha um olhar cavernoso, mas hidratado, respondeu-lhes- Ahn? E eles retorquiram – Ã, e ele abanou com a cabeça. A criança chamar-se-ia Ã. Terminada a sessão e a viagem, foram para casa, carregados com água e com um filho com nome e com padrinho, ainda que se chamasse Ã.

Desta forma, o tratariam toda a sua vida. A parte mais difícil foi adaptar-se ao seu nome, foi aprender a escrever. Não havia forma de conseguir acentuar a diferença entre A e Ã. Mas o seu nome tinha de ser o último e era preciso inventar isso. E isso faria Ã. Durante muitos anos, por tentativa e erro, este homem conseguiu superar-se e descobriu o til, passando a ficar na história, como o inventor do til. Ã já não era infeliz. No seu processo de autoconhecimento inventara um acento, o primeiro de muitos acentos e a vida passou a fazer sentido.

No fim, no fim, Ã podia ter um nome curtinho mas foi um grande homem e teve uma vida comprida…   

 

 

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