13 Dezembro 2015      13:07

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UM CONTO DE NATAL

O comboio parou na estação de Santa Clara-a-Velha, quando o sol terminava a sua corte à terra, deixando o céu azul-cobalto, pincelado de cores ardentes, que teimavam em exibir-se antes de serem apagadas pelas estrelas.

Assim que se abriram as portas das carruagens o Eduardo saiu e percorreu alguns metros, à procura de um rosto familiar. Sentia um frio incisivo, mas (estranhamente) reconfortante, envolto em aromas e memórias deliciosas. Era um cheiro açucarado, aquele da felicidade… cheirava a lenha a arder nas lareiras, a pão acabado de fazer, a batata doce assada, a terra lavrada. Perdeu o olhar no verde da paisagem, já camuflado pelo crepúsculo. Recordou os verões quentes que passava entre a praia e a barragem, as primaveras vividas nos prados floridos e as festas de Natal que reuniam toda a família. Em Santa Clara-a-Velha, a terra dos seus avós, sentia-se o rapaz mais feliz do mundo, longe da muralha que a cidade erguia, separando-o da Natureza.

O seu avô apareceu, como sempre, no meio de gargalhadas, com as bochechas muito rosadas, a espreitar entre as barbas cada vez mais embranquecidas pelos anos. Levantou o Eduardo do chão com um forte abraço, deixando cair a boina que lhe aquecia a cabeça.

No caminho para casa passaram pela rua da igreja e pela venda do Sr. Abel. Entraram para comprar pão e o avô bebeu um medronho enquanto o rapaz se deleitava com os grandes boiões, de vidro transparente, cheios de rebuçados, pirulitos e bolachas de baunilha. O balcão era muito antigo, de madeira pintada em tom de verde água, com uma montra sempre cheia de guloseimas deliciosas.

O avô lembrou ao Eduardo que a avó o aguardava, em casa, com um bolo de laranja, saído do forno e que seria melhor nem pensar em trocá-lo por qualquer outra iguaria.

Nessa noite, por se encontrar longe dos pais, que só se juntariam à família na consoada, experimentava o gosto da liberdade, que não podia ter na cidade… Os avós permitiam que ele andasse sozinho pela aldeia, que percorresse toda a zona, de bicicleta, até à barragem. Decidiu que, na manhã seguinte, iria até à mata fotografar os cogumelos que conseguisse encontrar.

Depois do pequeno-almoço começou o seu passeio. Embrenhou-se entre estevas e troviscos, misturou-se com tojos e urzes. Avistou dois ratos de Cabrera e um sapo parteiro.

O Eduardo adorava aventurar-se pelos resquícios da mata mediterrânica existentes na região. O avô tinha-lhe dito que, em tempos longínquos, o nosso país era de tal forma abundante em vegetação que conseguiríamos percorrer a distância que separa o Algarve do Minho, caminhando sobre as copas das árvores, sem nunca tocar no chão…

Nessa época, eram as árvores do género Quercus, como os carvalhos, os sobreiros e as azinheiras, que dominavam as paisagens. A mata mediterrânica, designação atribuída ao coberto vegetal que revestia Portugal, tinha também outras espécies, que entrelaçavam cores e odores, como o medronheiro, o loureiro, a urze, a giesta e arbustos mais pequenos como o alecrim, a alfazema e o tomilho.

Estava o rapaz a fotografar as folhas de um azevinho quando ouviu um sussurro:

-Não, Pinus, ainda não vai ser desta vez…

Pensou que era a sua imaginação ou o barulho do vento a agitar um pinheiro, que se erguia ao lado do azevinho, pois não avistou ninguém.

Continuou a fotografar as bagas da planta até escutar novamente:

-Cuidado! É aí que eu guardo o meu veneno!...

Agora tinha a certeza, ouvira uma voz, claramente!... E era o azevinho… estava a falar com ele!

- As minhas bagas são venenosas… Não te sintas tentado a comê-las!

- Mas é claro que não as comerei… A minha mãe tem sempre azevinho em casa, no Natal, e já me tinha avisado! - respondeu o Eduardo, melindrado.

- Mas é proibido apanhar azevinho em Portugal! A tua mãe não o pode ter em casa…- ripostou o arbusto.

O Eduardo explicou à planta que, o azevinho que a mãe comprava, não era apanhado na Natureza; era cultivado e vendido em lojas de flores.

Continuaram a falar até o Eduardo perguntar ao azevinho como era possível estar a ter aquela conversa com um arbusto. O azevinho disse-lhe que as plantas e os animais conseguem comunicar entre si e que, por vezes, alguns humanos também ouvem e falam com eles. Mas só os humanos que sentem a Natureza…

Depois, apresentou-lhe o amigo pinheiro, que crescia ao seu lado, havia já mais de 50 anos. Contou-lhe que a árvore ficava sempre triste no Natal pois ninguém a enfeitava. Tinha crescido a ouvir os pinheiros mais velhos a contar histórias de povos muito antigos que iam para as florestas ornamentar os pinheiros com frutos e vegetais para terem boas colheitas na primavera. O azevinho bem tentava atirar-lhe as suas bagas vermelhas, para o animar, mas acabavam sempre por escorregar pelas agulhas da árvore.

O Eduardo achou aquela história fantástica… pensava que o ritual de enfeitar pinheiros no Natal era uma prática recente. “Modernices”, como diziam os seus avós, que nunca tiveram árvores adornadas, em casa, na sua meninice. Apenas um menino Jesus e uns sapatinhos para receberem alguns presentes.

Quando voltou a casa dos avós, os seus pais tinham acabado de chegar. Ao abraçar a mãe sentiu-se tentado a contar-lhe o que tinha acontecido junto à barragem, mas, foi interrompido pelo pai, que trazia para a mesa de jantar uma travessa cheia de um arroz doce que cheirava divinamente.

Nessa noite, reuniram-se à volta do bacalhau, dos pasteis de batata doce, do bolo rei e das boas recordações de momentos vividos pela família.

No dia seguinte, antes de todos se levantarem, o Eduardo foi à horta do avô. Apanhou algumas cenouras, pequenas abóboras coloridas e pimentos encarnados. Enfiou tudo dentro de uma mochila onde já tinha colocado algumas peras, laranjas e romãs.

Pedalou até ao sítio onde, no dia anterior, tinha conhecido o azevinho e o pinheiro. Quando chegou começou a enfeitar os ramos da árvore que se ria, feliz, sob o “escutar” atento do azevinho. No final, contemplou a sua obra e surpreendeu-se com o resultado: o pinheiro exalava beleza e sumptuosidade.

Regressou para junto da sua família e, posteriormente, para a sua cidade e para a sua vida de sempre.

Não ficou surpreendido quando, uns meses mais tarde, a televisão noticiava que a produção de batata doce tinha sido a maior e a melhor de sempre no Litoral Alentejano…

 

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