13 Dezembro 2015      11:06

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HÁ QUE RASGAR

INCONSTÂNCIAS

Não sei o que lhe contaram enquanto crescia, caro leitor, mas para bem da elação vou pressupor que foi o mesmo que me contaram a mim. Hoje pergunto-me ainda como foi tão simples e tola a minha creditação dos contos de fadas e dos seus ideais de pouco complexo. Hoje pergunto-me mais do que isso – pergunto-me no que acreditar repetidamente para pôr os pés no chão frio e a cabeça pesada no lugar que lhe corresponde.

A verdade, vejamos, está sempre longe e perto de nós, em pequenos fragmentos que bebemos consoante o momento que festejamos, qual champanhe delicado que pelo curso do tempo se vai alterando. A verdade usa-se para que a noite seja mais simples de suportar – Ou mais difícil.

Devo confessar-lhe que o meu sono deixou de ser simples desde que me apercebi que entrava na fase a que chamam de “ser adulto”. Eu ainda não sabia sequer como ser (pois que ser é uma simultaneidade de polos inversos que havemos de saber equilibrar) e andava meia direita, mais torta sobre a minha espinha preocupada com as sentenças alheias de causa desconhecida e pediam-me já um veredicto final – uma fórmula mágica, uma palavra correcta, um lema pelo qual viver. E nós não vivemos por lemas, descubro hoje, não vivemos através de poção ou feitiço. Nós vivemos por coragem; pela infinita capacidade de renovar a nossa coragem.

Os meus pais nunca me contaram, enquanto pequena, que viver está de mãos dadas com morrer e que quanto mais vivemos, quanto mais pressa temos em viver mais intensamente morremos. Os meus pais também nunca me contaram que serão necessárias imensas e tremendas mortes que nos parecerão o final antes que consigamos começar verdadeiramente. Começar a ser. – Levamos o tempo de uma vida inteira para nos conhecermos e chegarmos á noção aterradora de que nos transformamos tão frequentemente quanto se transforma a verdade. Este movimento, no entanto, não nos torna impostores mas meramente pessoas. Pessoas que vagueiam pela superfície de uma terra e que como essa terra vão descobrindo, sucessivamente, que as soluções não são exactas e partilhadas: são pessoais e interiores.

 Conto ainda com pouco tempo dessa experiência – vou ainda correndo em círculos, muitas vezes tombando para lá do chão – mas se existe algo que lhe posso dizer que já aprendi é que temos que rasgar muitas vezes o peito. Temos que ser suficientemente corajosos para, num momento ou outro, despirmos a nossa pele, rasgarmos o peito e observarmos a essência sanguínea, a ferida, a velocidade a que corre, a intensidade com que dói. – Saber doer, deixar doer é uma prova de coragem. Reinventarmo-nos a partir dessa doer é, talvez, a maior prova de coragem que já prestei.

A sociedade tenta dizer-nos que não há tempo para parar, não há maneira de recomeçar. A sociedade regozija-se em repetir-nos, na nossa face, que a nossa face tem que ser alegre e suave, disposta a brincadeiras fortuitas e graças fúteis. Mas não é na sociedade que a vida se passa. Não é no julgamento de uma face que a vida se passa, não é no litost alheio que a vida se revê.

A vida é em casa pelas quatro da manhã quando não conseguimos adormecer e só o suor frio nos embala. A vida é na perda de parcelas pessoais, na árdua tarefa de viver e reviver e reavivar, todos os dias para o resto da vida. A vida é no acto de arrumar a cozinha após o almoço, após todos os almoços, consecutivamente, dia-a-dia. – A vida é aí e ninguém nos conta ou nos prepara para declarações simples e pesadas como estas. Ninguém nos prepara para a realidade de rasgar e ter que analisar a própria ferida.

Só por isso deve ser nosso todo e qualquer direito de fechar a face e aceitar as lágrimas como a fénix aceita arder. De tornar esse rasgar sofrido o nosso rasgar sofrido, de o acalentar e de conversar com ele. Ter tempo para ser e para deixar de ser. – E a verdade é aí, no saber que as opções são essas e não uma única.

Há que rasgar. Rasgar com todas as nossas forças ou de mansinho, rasgar porque já não nos serve ou porque está demasiado grande, rasgar porque dói a mim ou porque dói ao outro. O tempo que nos avaliamos é tempo de rasgar e rasgar magoa. Não estamos preparados para mudar o nosso conhecimento de nós mesmos tão repentinamente principalmente porque vivemos ludibriados na noção de que terreno confortável é terreno seguro. Enganamo-nos. Lembro-me de já faz muito tempo uma pessoa prezada me dizer que o terreno da dúvida é o mais seguro: é aquele em que nos encontramos mais alerta. Estar alerta é também descobrir e por mais que descobrir nos inquiete é uma condição natural do ser humano.

É engraçado que na luta para nos mantermos a única solução é metamorfosearmo-nos para que nos consigamos manter e rasgarmo-nos para que nos consigamos metamorfosear.

Os meus pais nunca me contaram que a vida não se restringe aos contos de fada, que existem mais de mil direcções para onde me posso virar e onde me posso revirar mas, ao rasgar-me, eu descobri isso por mim mesma.

Hoje sigo com coragem, por vezes de cara fechada hibernando na minha tristeza e rebuscando na minha força, e a coragem é o meu passo de mágica. 

 

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