31 Março 2015      18:27

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Falar com sotaque

Numa das suas visitas a Universidade de Évora, José Saramago, o galardoado escritor português, relatou uma curiosa estória, ocorrida durante uma recente deslocação a uma universidade brasileira. Segundo Saramago, estava ele a meio de uma intervenção quando foi abordado por um membro da plateia que lhe pediu que falasse mais devagar pois muitos dos que ali estavam não conseguiam perceber o seu sotaque. Surpreendido, o escritor retorquiu incisivamente que quem tinha sotaque ali eram os ouvintes e não ele. Infelizmente, Saramago não foi muito afortunado na sua observação e incorreu num erro frequente de perceção do conceito de sotaque. Afinal, todos temos sotaque, independentemente das nossas origens e filiações nacionais ou linguísticas.

‘Sotaque’ é o termo popular que se dá à forma distinta com que um falante pronuncia os sons, ou seja, as vogais e as consoantes, de uma língua e ainda pela entonação, ritmo e ênfase que o falante dá às palavras e frases que constrói. Estas características de uma determinada pronúncia, juntamente com diferenças de vocabulário, construções frásicas e formação de palavras, fazem parte do que chamamos de dialeto. Geralmente, o termo dialeto é empregue no sentido de variedade regional de uma língua. O que ocorre nesta definição é a noção de distanciamento, maior ou menor, de uma determinada norma padrão (em Portugal, o falar de Lisboa e Coimbra; no Brasil, do Rio e São Paulo). Porém, a própria norma padrão deve ser considerada um dialeto regional que ascendeu, de forma linguisticamente arbitrária, à posição de modelo de correção idiomática.

Em relação às línguas internacionais, tais como o português, o inglês e o espanhol, é habitual identificarmos em cada uma das suas variedades, características de uma pronúncia que parece ser comum aos falantes dessa mesma variedade. Por isso, somos rotulados com um sotaque brasileiro, ou um sotaque angolano, mas também um sotaque português. Por outro lado, dentro da fronteira do mesmo país, para além dos dialetos regionais (por exemplo, baiano, carioca, ou nordestino, no Brasil, e transmontano, algarvio, ou açoriano, em Portugal, entre muitos outros), encontramos ainda variações de pronúncia devido a fatores sociais tais como classe social, raça ou etnia, sexo ou até mesmo idade. Um sotaque, portanto, deve ser entendido como uma conjugação de características da pronúncia que cada falante possui da(s) língua(s) que utiliza.

Uma outra forma de se identificarem sotaques tem a ver com o modo com que um estrangeiro pronuncia a nossa língua materna (ou a forma como pronunciamos uma língua estrangeira). Mais uma vez, utilizando-se um critério puramente linguístico, falar uma língua com sotaque estrangeiro é, não só, expectável como também natural. Ao aprendermos uma língua estrangeira levamos connosco o sistema de sons que adquirimos com a nossa língua materna. Quando os sons da nova língua são diferentes dos sons que reconhecemos e utilizamos, é natural que façamos aproximações do que achamos serem os sons que ouvimos na língua estrangeira. E mesmo quando somos capazes de reproduzir os sons ‘estrangeiros’ com (quase) perfeição, existirão sempre aquelas outras características da forma de falar a nossa língua materna (a entonação, a acentuação e o ritmo que damos às palavras e frases) que irão, de alguma forma, mais cedo ou mais tarde, denunciar-nos como falantes não-nativos.

Mas apesar do sotaque ser inerente a qualquer falante de uma língua, o problema está quando o utilizamos como instrumento de discriminação e intolerância. Há uma linha tênue que separa o humor criativo e inteligente da utilização estereotipada do sotaque que ridiculariza e segrega.  Além disso, uma forma de falar não deve, e não pode, trazer consigo qualquer atitude de superioridade social. É certo que o ser humano demonstra alguma dificuldade em aceitar a diferença, principalmente quando esta diferença não passa de um conceito abstrato. Será através do conhecimento e do contacto que passaremos a aceitar e respeitar outras formas de falar a língua. Mais do que a simples tolerância, o que importa é legitimar as variedades linguísticas. 

 

 

Luís Guerra, Diretor do Centro de Línguas da Escola de Ciências Sociais (CLECS), Universidade de Évora