22 Novembro 2015      17:38

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ETERNOS VELHOS DO RESTELO

Mal pensava Luís de Camões que os seus velhos do Restelo ainda hoje andariam por Portugal: com uma voz muito mais agressiva que triste, mais jovem que engelhada, mais medrosa que realmente fruto de uma experiência de vida.

Se há alguma certeza que jamais me traiu (ainda que não seja forte em certezas e seja dúbia em julgamentos) é que o mundo muda todos os dias. O mundo muda a cada minuto, a cada segundo, a cada gesto a que os nossos membros se permitem ou não. Existe quem, no entanto, não compreenda que esse é o rumo natural que o universo toma e, insistente e repleto de queixumes, com dedos apontados e face raivosa se senta no seu trono mundano, limitado á poltrona suja e rasgada de sua casa e debita no facebook aquilo que pensa serem umas quantas pérolas de sabedoria (daquela que pouco interessa mas que faz o ego inchar).

Com a soberania de um rei do nada e um pensamento crítico repleto de críticas infundadas e descabidas apresenta-se o actual velho do Restelo português. Este velho do Restelo aparece todos os dias em várias caixas de comentários das principais notícias nacionais ou internacionais e, se formos corajosos o suficiente, podemos entrar pelo seu perfil e aguentar a pena pela Humanidade que vamos sentir.

Começo por fazer esta análise de não um sujeito, mas o que parece ser um conjunto de ideais (ou não) portugueses para falar do que abalou o mundo faz bem pouco tempo: os ataques a Paris. Sei que a ferida está ainda aberta e que o medo impera de forma extrema, mas as palavras, neste momento, são a arma passiva mais poderosa que temos a nosso dispor, e sendo uma admiradora das mesmas não posso passar por cima do facto de que o seu uso se faz erróneo neste momento em que não só Paris sofre, não só a Síria sofre, não só o Líbano sofre, Brasil sofre, mas o mundo sofre com eles e por eles que no fundo somos também nós.

Isto parece ser a questão mais complicada de assimilar para estes velhos de restelo: somos todos nós. Não somos nós aqui de Portugal ou eles ali de Espanha. Não somos nós, os cristãos ou eles, os budistas. Não somos nós, os brancos e eles, os negros. No final do dia, somos todos nós para além de todas estas questões que, na sua grande maioria, foram criadas pelo homem. O mesmo homem que no fundo pouco sabe acerca do que fazer aqui neste mundo, aqui nesta terra. Foi o Homem que criou as fronteiras e egoísta disse porque quis: esta terra é minha. Foi o homem que um dia quis mudar aqueles que já estavam naquela terra porque pensava que o seu modo de ser pessoa era mais importante que o daqueles que ali viviam. – Foi aí que começou toda a crueldade, toda a chacina, todo o problema; e nós hoje dizemos que a culpa é do Médio Oriente porque é o Médio Oriente. Dizemos que a culpa é dos Muçulmanos porque são Muçulmanos. Teremos assim uma memória tão curta que se esqueça do que foi a Santa Inquisição? Talvez não seja curta, mas sim selectiva. Somos assim tão ignorantes que não sabemos a nossa própria história (não apenas a que vem nos livros escolares e já descuramos, mas aquela que não dá jeito saber)? Não recordamos os ataques do Ocidente e a forma como as grandes nações se formaram?

A nossa hipocrisia começa aí (talvez com um pouco da nossa falta de informação ou vistas curtas misturadas.) Hipocrisia. Aquela palavra que foi resgatada por uns quantos iluminados para atacar quem cedeu á partilha de informações, á exposição da bandeira francesa, às condolências pelas vítimas de Paris. Hipocrisia acompanhada de imagens de desastres na Síria, no Brasil, no Líbano. – É engraçado como de repente acordamos da nossa vida comum e nos lembramos que há mais mundo do que o Ocidente. É engraçado como esse acordar é tão ou mais selectivo que a nossa memória; porque sim, porque nos outros 364 dias do ano poucos ou nenhuns são aqueles que se lembram. São poucos ou nenhuns aqueles que se importam. No entanto, neste momento em que o assunto está em voga é mais prazeroso fingir que sou alguém fora do mainstream, alguém com uma sensibilidade inteligente e justa, alguém que precisa de, no fundo, mostrar que é um intelectual que não segue modas ou preceitos a quem o rodeia. E assim mete, numa demonstração de apoio de todo o mundo, o rótulo de uma coisa simples e desprovida da profundidade necessária para falar tanto dos ataques em Paris como dos ataques noutro local qualquer do planeta como o de moda.

Apontar o dedo a alguém é uma faca de dois gumes. Apontar o dedo a alguém numa infantilidade como esta num momento em que vidas humanas foram perdidas, famílias foram dilaceradas e embebidas numa dor que desconhecemos é a maior falta de respeito a que poderia ter assistido.

Não, não importa o intelectual nato que és. Importa que te importes! Não só com um mas com todos, não só para dizer o reverso mas porque dói. Dói imenso sentir que a vida é uma coisa tão frágil que possa acabar num estalar de dedos desumanos.

Não importa quem somos, donde somos, mas que saibamos estar unidos. Importa dizer: ainda estamos aqui.

Esta posição de ataque é já uma moda dos velhos do restelo portugueses (sim, a palavra moda foi intencional) embora desconfie que alguns a usam apenas porque não leem as coisas certas, não procuram nos lugares proveitosos, não assistem aos programas interessantes (tudo menos o que dê um pouco de trabalho mental, correcto?). Porque se abstêm de formar um pensamento lógico e pessoal e assim vão á mercê do que surge nos principais canais da Mídia. Daí surge o ódio racial, o pânico exacerbado, o patriotismo negativo – a noção errada do que se passa. Daí surgem os doutores em teologia, em psicologia, em sociologia formados por uma manobra de diversão para os manter assim, como são: velhos do restelo portugueses.

Quantos de vós ainda acreditam que aquilo a que assistimos é uma guerrilha religiosa? Quantos de vós ainda não se aperceberam que a política exerce todo o seu poder por trás daquilo que achamos que está a acontecer? Enquanto culpamos os peões, os grandes senhores soberanos vão-se rejubilando no conforto das suas casas porque o jogo já está a dar certo.

Sim, é um jogo. Um jogo para decidir quem ganha mais, explicado de uma forma muito simples. Um jogo que mantém o capitalismo a dar cartas, um jogo de interesses. O Ocidente é tão ou mais culpado que o Oriente e isso é fácil de observar se o nosso pensamento crítico for forte o suficiente para aliar o passado ao presente.

Queridos velhos do restelo: não é o momento certo para nos dividirmos baseados no ódio, no medo, na ignorância ou na opinião comum. É o momento de perceber que estamos todos, com todas as nossas diferenças, todos os nossos problemas, toda a nossa mais pura essência no mesmo barco: o barco em que a humanidade é relegada para o fundo pelo capitalismo descontrolado. Mas que importância tem o consumir e o poder económico quando já não existir ninguém para o deter? Que importância terão os cinco mil deuses existentes se ninguém a eles orar? De que servirá a Terra se por ninguém for habitada?

É imperativo destruir barreiras criadas pelo passado. Barreiras firmes, intransigíveis que, de dia para dia, perdem a sua validade e actualidade.

Queridos velhos do Restelo, é hora de mudar com o mundo, o mundo. Porque não é o mundo que se faz a si mesmo, somos nós que o fazemos e, com toda a certeza vos digo: aqueles que não acreditarem na mudança nunca serão aqueles que a farão acontecer.