11 Julho 2015      10:19

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ESCRITA DO SUDOESTE

Esta é uma história dentro da história. É a história de um povo que viveu há mais de dois mil anos e do qual não se sabe tanto quanto se gostaria de saber. Sobre um povo que a BBC quis conhecer melhor e recentemente filmou uma série em Loulé e Almodôvar. Em parte, não sabemos muito porque ainda não o conseguimos ler e só quando conseguimos ler alguém ou algo é que ficamos a saber muito mais sobre as pessoas ou sobre as coisas. Mas esta é, essencialmente, uma história de pedras, de estelas e de lápides funerárias que se escondem e têm vindo a ser encontradas no Alentejo e Algarve.

Há sempre algo de mágico no passado e na história, imagens criadas na minha cabeça que me fascinam. Poder imaginar o quotidiano vivido há séculos, poder imaginar os gestos e os olhares para um horizonte que se foi modificando ao longo dos anos, mas mantendo-se sempre igual na sua essência, é uma sensação que nos transforma a cada segundo. Imaginando essas imagens, olhando os testemunhos chegados até hoje, vemos que, antes da chegada dos Romanos, vivia na Península um povo que se dava pelo nome de Cónios e que tinha uma capital que ainda não se conhece a localização e que tinha uma escrita. Situada especialmente no Baixo Alentejo e Algarve, a escrita do sudoeste tem as suas marcas gravadas cobertas pela terra das planícies e serras do Alentejo.

Às vezes, encontram-se memórias dos tempos idos, pré-romanos, gravadas nas lápides a que damos o nome de estelas. Escritas numa língua que ainda não foi, até hoje decifrada, numa língua que é considerada a mais antiga da Península Ibérica, são traços de um tempo que povoou a Península. Contemporâneos daquela que é chamada a Idade do Ferro, viveram essencialmente na zona do Sudoeste da Península. Aquilo que se sabe deste povo é a sua inovação de uma escrita endémica na Península que honra os seus mortos, que nos tenta dizer como viveram os nossos antepassados desse tempo. Só posso imaginar o seu quotidiano… como viviam os guerreiros? Em que casas habitavam e que língua falada usavam para comunicar?

A história do mundo e de nós todos é muitas vezes contada em museus e, em Almodôvar existe, há já vários anos, um Museu dedicado a esta Escrita e aos testemunhos desse tempo. Nas várias salas, as exposições exibem diversas estelas, de diferentes tipologias em que os caracteres que marcam as pedras de xisto são escritos da direita para a esquerda, semi-silabários e com grandes semelhanças ao grego antigo e ao fenício. Uma visita a este museu ajudará a conhecer melhor os contornos de um tempo que, entre nós alentejanos, é pouco conhecido. Nos vales e nas beiras das planícies, ou no cimo dos montes, olhando Monchique, aquela que se diz ser a montanha sagrada.

Há um momento em que as histórias das estelas e a minha história pessoal se misturam e passam a caminhar a par. Aconteceu-me, em 25 de fevereiro de 1996, quando, numa visita da escola, visitei o Museu Rainha D. Leonor em Beja e, na área dedicada à época pré-romana, vi várias estelas epigrafadas, ou se preferirem, pedras escritas numa língua estranha. No meio dessas estava uma encontrada em Corte Freixo, havia, na altura, 40 anos. Conheço a Corte Freixo desde pequeno. Povoação situada a poucos metros de casa, tem um vale quase idílico pleno de freixos e aloendros, ladeando uma ribeira que corre serena até desaguar na Azilheira. Intrigou-me o facto de ter sido encontrado, junto à ribeira, tão importante testemunho de um tempo ido e, próprio da curiosidade de alguém que não se contenta com uma só resposta, no dia seguinte decidi averiguar o sítio onde tinha sido encontrada a primeira estela. Enquanto caminhava na várzea à beira da ribeira, o meu olhar prendeu-se a uma pedra que estava meio enterrada. Mal podia acreditar que acabara de ver um outro testemunho desses tempos. Era uma estela substancialmente mais pequena e com menos caracteres. Tinha também as marcas dos tempos e provavelmente dos arados e das charruas que a revolveram e tiraram do lugar inicial. Infelizmente, só consegui encontrar um fragmento dessa estela que, penso, seria muito maior. Transportei-a até casa e comuniquei a quem de direito o achado. Devidamente estudada e publicada por arqueólogos, tornei-me seu fiel depositário durante alguns anos, até à abertura do Museu, em Almodôvar, altura em que passou a estar exposta no museu, juntando-se a todos os restantes fragmentos da nossa memória.

Graças a ela e ao facto de nos termos cruzado e encontrado, tornei-me um interessado nesta Escrita e nos seus testemunhos escondidos entre nós. Graças a ela, fiquei a conhecer a Estela da Abóbada que aqui apresento, de um fantástico detalhe e a que apresenta um guerreiro no meio, conheci também a estela da Cerca do Curralão, a de São Martinho, a do Canafixal e tantas outras que, um dia, quando tudo se perceber da escrita e do seu significado, perceber-nos-emos melhor e conheceremos quem nos antecedeu nos campos e nas planícies deste vasto Alentejo e Algarve. Diria, como já disse em crónicas anteriores, sobre sítios diferentes, que vale muito a pena uma visita ao Museu da Escrita do Sudoeste!