5 Setembro 2015      12:50

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CONTO IV

Durante o mês de Agosto presenteamos os leitores com um conto de ficção, sobre uma investigação contada pelo testemunho de um dos seus protagonistas, que se passa num verão quente do Alentejo. Uma história contada em quatro partes ao longo deste mês, pelas palavras de um inspetor frio, reformado, que relembra quando foi chamado para resolver o desaparecimento de uma criança em 2004, da autoria de João M. Pereirinha.
 
QUARTA PARTE

 

- Já consegui captar a sua atenção agora? Enfim, apesar de não conseguir provar nada disso, quando constatei esse facto, juntamente com tudo o resto, fiquei com uma sensação amarga, as minhas suspeitas de que algo estava realmente mal contado aprofundaram-se. Sabe, não sei se está familiarizado com o termo de sinestesia…?

- Desculpe-me, não de todo…

- Bem, lembra-se de quando lhe falei daquele sabor a terra que sentia na boca quando visitei o sítio pela primeira vez?

- Sim, era por causa da extração de mármore da zona…

- Correto! Então, imagine que, mais do que sentir o sabor na boca, sentisse simultaneamente as cores e os sons que lhe transmitissem essa sensação de dor, morte, cansaço e desolação… É isso que é a sinestesia ter várias sensações só através de uma única impressão. Era aquele sabor na boca… da primeira ignorei, mas agora senti-o como nunca e tinha finalmente a certeza de que algo de profundamente errado se passava ali. Sabe, há muita gente que descreve o fim do mundo a partir de sonhos, a desolação, o esquecimento dos sítios, o som do vento a passar por entre as ervas que nasceram selvagens por entre a ferrugem do metal abandonado, contraposto com o silêncio de uma superfície terreste desabitada. Mas foram poucos os que tiverem a oportunidade de pintar essa visão sem ser em filmes ou quadros, mas na vida real, e menos ainda queles que têm a desgraça de o presenciar… Aquele sítio só me fazia lembrar o fim do mundo…

- Mas o Alentejo em geral?

- Não, refiro-me em específico àquela zona, àquele aglomerado de municípios bombardeados pela desolação dos efeitos industriais esgotados, com aquelas crateras abertas e abandonadas, as montanhas artificiais de pedra erguidas ao longo das estradas, com aquele pó branco a voar em partículas minúsculas, a infiltrar-se na água, na pele, no cabelo, e como em todas as visões apocalípticas, com uma enorme mancha de esperança no meio – o inspetor olhou pela janela e ficou em silêncio durante um bocado, sem se mexer, com o cigarro a transformar-se em cinzas, lentamente, que caiam sobre o soalho de madeira que escutava atentamente a conversa entre os dois.

- Está a referir-se ao quê?

- Desculpe, deve achar que estou a divagar e que nada disto é útil ou serve para qualquer coisa…

- Não, você é que está a pagar este trabalho, e estou simplesmente à escuta, a recolher a matéria-prima. Mas a esperança, ao que se refere?

- Imagino que não conheça Vila Viçosa…. Quer dizer, não me refiro às fotografias, aos vídeos, refiro-me a ter lá estado.

- Não, infelizmente não, nunca fui lá.

- Pois é, no centro de tudo o que acebei de lhe dizer há uma espécie de oásis monumental, erguido em mármore, desde as pedras da calçada, aos degraus da entrada e ombreiras das casas, até a um palácio com uma fachada tremenda, em frente ao panteão dos seus donos, a família de bragança, não menos opulente… Ao andar naquelas ruas chegamos a achar razoável todo o tipo de aberrações possíveis entre os homens e a terra que lhes oferece os recursos necessários para construir aquele pedaço de harmonia arquitetónica. Enfim, todos os momentos apocalípticos têm um instante de redenção total, e aquela vila é essa possibilidade… Não será à toa que uma dinastia inteira a escolheu para viver, precisamente os bragança, ou que mesmo o último rei tenha decidido passar por lá os seus últimos dias de vida certo de que seria assassinado mais cedo ou mais tarde… também não será por acaso que é mãe de tantos poetas e artistas… fiquei a saber de tudo isto nos dias em que lá passei.

- Decidiu passar lá uns dias?

- Sim, mais precisamente um mês… a ideia era recolher mais informações sobre o caso, sobre as pessoas, sobre quem é quem. Mas num sítio tão pequeno como aqueles, seja na vila como nas aldeias em redor, se queremos uma coisa temos de começar a perguntar por outra… Não podemos ir diretos ao assunto, sobretudo se somos forasteiros por aquelas bandas, é o primeiro passo para o boicote.

- Então como é que fez?

- O que acha? Um tipo sinistro, que não é dali, a fazer perguntas, com um bloco de notas e um gravador na mão para trás e para a frente, não é a coisa mais discreta do mundo. Aliás, é impossível ser discreto numa terra onde metade dos eleitores é vizinho do presidente da câmara, por exemplo. Então decidi apresentar-me como escritor, interessado em escrever um romance sobre a ilustre poetisa de Vila Viçosa: Florbela Espanca… isso abriu-me as portas a tudo no início e permitiu-me ouvir todo o tipo de histórias sobre tudo e mais alguma coisa, menos sobre a poetiza…

- Incluindo sobre o desaparecimento da criança…

- Precisamente! Nem era preciso muito para chegar lá, e que todos contassem muito mais do que me tinha contado anos antes quando apareci como PJ… Enfim, e é precisamente o que descobri desde então, que lhe trago nesta caixa, detalhadamente, para que leia, ouça, analise por si e possa comprovar as conclusões a que cheguei. Mas continuando. As pessoas faziam precisamente a mesma pergunta que eu “como é que é possível, uma mãe fazer uma monstruosidade daquelas à própria filha, já imaginou? Ah, desculpe, o senhor é escritor, deve imaginar muitas coisas dessas, claro…”. Mas não, nem a mim me passava pela cabeça que a mãe tivesse feito algo à miúda, nem os avós, e ainda menos o pai. E talvez ainda esteja viva…

- O que o faz pensar nisso??? – interrompeu o jornalista pousando a caneta e olhando muito admirado para o inspetor.

- Calma… captei a sua atenção agora?

- Sim, mas claro… quer dizer, até agora pensa que se tratava apenas…

- Do devaneio de um inspetor reformado, falido e que quer ganhar dinheiro à pala de suposições e delírios sobre um caso antigo que ninguém contestará mas que todos irão querer comprar…

- Quer dizer, mais ou menos…

- Claro, é precisamente isso que eles vão dizer, os seus editores, os críticos, toda a gente a quem apresentar esta história sem provas. É por isso que eu preciso que escute tudo até ao fim e depois deixo-lhe uma cópia de todas as provas que consegui arranjar, para que fale com elas e veja por si mesmo. Eu não quero que escreva um romance, quero que denuncie uma história, cuja maior prova eu ainda vou encontrar… – deu duas passas no cigarro até chegar ao filtro e apagá-lo – mas é provável que morra no caminho, por isso é que preciso de si, entendeu?

- Continuo todo ouvidos…

- Então, avançando, quando fui ter uma reunião com o presidente, que ao saber da estadia de um escritor na vila para falar sobre a poetiza local me convidou imediatamente para me dar todas as ajudas possíveis logo ali na esplanada. A formalidade e a informalidade ali andam de mãos dadas e é preciso ter cuidado para perceber quando e qual está uma ou outra em cima da mesa. Enfim, tive sorte de o homem não me reconhecer, porque naquela altura não cheguei a falar com ele, mas lembrava-me dele na televisão. Os mandatos nas nossas pequenas vilas e juntas não são a coisa mais rotativa do mundo, normalmente são uma espécie de pequenas dinastias, interrompidas por escândalos ou a morte, e ali não és exceção.

Foi numa conversa com aquele tipo – roliço, de bigode farto, um ar enfadonho e uma pose de estado constante, com pessoas a dar-lhe vénias constantemente, a tratá-lo por doutor, apesar de ter menos escola do que a maioria – que fiquei a saber que a empresa da família dona da casa e das terras onde a miúda desapareceu e onde toda a família vivia e trabalhava, era a maior exploradora de mármore da região. Eram uma espécie de semideuses do olimpo por ali… entre os sinais externos de grandeza, e os soslaios de bondade, eram patrocinadores da vida farta de toda a gente: os maiores empregadores; os donos da praça de touros; os maiores patrocinadores das festas populares; os maiores patrocinadores das duas associações de caridade do concelho; enfim, aquela porcaria parecia que não existia sem eles, e claro, o nosso amigo presidente, apesar de comunista de fachada, não teria ganho nenhuma eleição sem eles, “a vinda da família Ramon foi uma bênção para todos nós há trinta anos…”. Até tinham a própria igreja numa das vivendas que tinham por lá, e um padre na família… E sabe quem era o padre?

- Não…

- Aquele exorcista que esteve detido durante um dia… Ora, é claro que quando se lembrou, o tal presidente exclamou “não sei quem terá sido o imbecil da PJ que se lembrou de prender o Sr. Padre, enfim, uma blasfémia para um homem e uma família tão bons?! É natural que nunca mais tenham cá voltado como antes, mas ainda bem que mantém por cá todos os negócios…”, realmente era uma pena, porque o gordinho não apreciava nada ter de se deslocar a Leiria pra os visitar, “é sempre uma maçada, e eu detesto conduzir… mas sabe como é, temos de manter as nossas amizades a bem do futuro do município…”. Hipócrita de merda! Enfim, mas isto é Portugal, e não seria de esperar outra coisa de um gordo farto de 25 anos de poleiro, à pala de favores e cedências aos donos da maior pedreira da zona e do país, da maior empresa de maquinaria de fio de diamante da península e donos de mais de 20 serrações e outras tantas pedreiras ao longo do país inteiro… os donos da “Santos & Ramon, SGPS”.

Mas não é só ali que os tipos são poderosos. Aquilo é um império nebuloso, como um lago lamacento que não conseguimos ver com nitidez por entre a bruma da madrugada. Uma fortuna que começou com a venda de mármore italiano: há trinta anos os tipos levavam o mármore até Itália para ser exportado de lá como mármore italiano, apesar de ter saído do fundo dos montes alentejanos… Enfim, não há fortuna que não seja de herança ou conseguida à custa de um crime qualquer. E foi aí que me perguntei, e se foram aqueles filhos da mãe a fazer mal à criança?

- Foram?

- É mais complicado do que isso. E às vezes temos tudo à nossa frente mas não ligamos às coisas certas. E só despertei para isso quando pedi informações sobre a família a um amigo que trabalha nas finanças e me enviou cópias dos dados fiscais da empresa e da família. Você não vai acreditar nisto – abriu a última cerveja – os tipos são os maiores patrocinadores políticos do país, entram em todas as campanhas políticas, mas é ainda melhor do que isso, eles não se limitam a querer ganhar com um candidato ou partido, eles patrocinam todos os partidos com assento parlamentar e com somas iguais!!!! Ganham sempre!!! Mas é claro, o dinheiro nunca vai no nome de uma só empresa, quem tem mais de vinte empresas pode disfarçar isso muito facilmente, e quando vi a localização das empresas que me lembrei de outra coincidência… Por mais absurdo que isto possa parecer, e demorei algum tempo, olhe para esta lista – tirou uma lista da caixa e entregou-a ao jornalista.

- Sim… isto, são nomes de empresas, são as empresas da família?

- Veja com mais atenção, as moradas…

- Sim…

- Então agora olhe para esta lista – tirou um conjunto de folhas atadas com um elástico e meteu-as em cima da mesa.

- Isto são casos arquivados, são…

- Sim, são todos aqueles casos em que uma criança desapareceu, e alguém confessou ter assassinado a criança, desfeito do corpo e por ai fora, consegue perceber a relação? As moradas são uma correspondência exata!

- Mas acha que…

- Não acho, eu tenho a certeza! Estamos a lidar com um mais do que simples desaparecimentos ou homicídios aleatórios, e essa família está envolvida nisso até ao pescoço! É possível até que estejamos perante um assassino em série, e alguém se está a dar a muito trabalho para o encobrir! E eu vou descobrir porquê!

 

FIM

 


 

A HISTÓRIA CONTINUA

 

Inicialmente publicado como Conto no jornal TribunaAlentejo.pt, a história continua no "wattpad", sob a forma de romance: "ARQUIVADOS - Ouro Branco de Sangue Azul", onde pode acompanhar a história capítulo a capítuloa e deixar os seus comentários e sugestões. Clique no Link ou na Imagem, inscreva-se e participe.

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