9 Maio 2015      03:37

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9 DO 5

Tudo começou há muitos, muitos anos atrás. Na altura de deuses e deusas, de reis e princesas fenícias, tempo em que o alfabeto era diferente e de trás para a frente. Era uma vez uma princesa que se chamava Europa e estava só, no meio do campo. Sozinha, sentada nos Urais, olhava para o seu ocidente. Pensava nos largos campos que se estendiam até ao mar. Imaginava que o mundo terminaria aí. Seria um cabo que pensava chamar-lhe finisterra quando lá chegasse um dia.

Sentada no meio dos campos verdejantes, Europa sentia-se só, arrepiava-se com os ventos vindos do Leste. O dia anoitecia rapidamente, deixando atrás de si as memórias do Sol e do tempo que passou desde a alvorada. Europa falava consigo e com os que ao seu lado não estavam presentes. À medida que a noite se levantava, trocando o Sol pela lua, um raio de sol iluminou-lhe o rosto e o poderoso deus Zeus, entretido a desviar o olhar da Grécia, procurando olhar além dos Urais, viu o rosto lindo e cálido de Europa, frágil, unida numa só, prendida em véus feitos de cetim, num vestido de seda vindo do oriente que lhe cobria todo o dorso e os tornozelos, deixando apenas os pés de fora. Também esses eram macios e dóceis como o seu rosto. Nos seus olhos, Zeus viu um azul tão brilhante que iluminava todo o campo verdejante em frente. O seu reflexo tornava-se castanho e, lacrimejando, humedecia as curvas do seu rosto jovem. Europa estava sozinha, unida numa só, entristecia-se consigo, com a sua solidão, ainda que todos estivessem presentes. Nenhum desses todos que regia a sua vida, que lhe poderia acalmar a tristeza com as palavras e os atos certos, a desviava de cismar nesse pensamento. Para cá dos Urais, Europa sentia-se envelhecer como se amanhã fosse já o dia que nunca deveria ter acontecido.

Zeus fixou o seu olhar nela e apaixonou-se. A doce princesa, atraente pelo seu rosto, pelas suas curvas sensuais e diferentes em todos os pontos, acomodou-se no coração de Zeus. Mas não a poderia abordar assim, Zeus assustá-la-ia. Decidiu disfarçar-se de touro manso e seduzir a pobre princesa que chorava o seu destino. Debaixo da capa de um touro meigo, manso, Zeus aproximou-se da pequena incauta e deixou que ela se sentasse no seu dorso, levando-a para longe, para ocidente num imediatismo que ninguém perceberia durante muitos anos.

Europa e Zeus apaixonaram-se. Europa sorriu no olhar de Zeus e Zeus sorriu nos olhos brilhantes de Europa. Do seu amor nasceram muitos filhos, tantos quantos aqueles que hoje conhecemos. A todos deram diferentes nomes e a todos deixaram a identidade como herança. Aqueles nascidos enquanto viveram mais a norte, presenteados com os olhos azuis da mãe, deixaram o lar dos pais muito novos e aprenderam a viver no frio, a envolver-se em roupas quentes e entender-se numa língua desigual. A rigidez do seu pai na sua educação superou a meiguice de sua mãe e, como uma árvore que envelhece à semelhança dos ramos que lhes cortamos. Somos todas as árvores que plantamos e fazemos crescer. Nem sempre os irmãos se entenderam, nem sempre os irmãos foram felizes, nem sempre a língua que falaram foi a mesma e separaram-se cada vez mais dos outros. Casaram-se com pessoas de outras paragens, aliaram-se a tons de pele diferentes e misturaram o brilho dos olhos.

Outros irmãos desceram da casa de seus pais ao Sul e aí se instalaram e casaram com gentes de outros povos ainda mais do Sul e ainda mais do Norte. Quem somos? Somos todos filhos e descendentes de Europa. Somos todos do Sul e somos todos do Norte. Hoje somos os fios, a fibra e o tecido da Europa, as capas e todas as lágrimas. Somos os olhos de Europa, a força de Zeus. Somos Portugal, filhos de descendentes que desceram.

Estamos unidos numa bandeira sobre um fundo azul com os olhos da Europa, brilhando no amarelo dourado em doze estrelas, símbolo da perfeição, símbolo de lendas antigas de cavaleiros e távolas. Somos irmãos, muitas vezes, demasiadas até, desunidos e olhamos como quem olha para outro com um olhar de quem não conhece e não vê, não observa nem sente.

Estes filhos da Europa somos nós, somos todos nós, a construir uma casa comum que abrigue os irmãos destes do Norte e os filhos daqueles do Sul. Construímos uma casa, construímos um lar, partilhamos matérias-primas mas nem sempre começámos pelos alicerces e, frágil ao vento que desde sempre soprava nos cabelos da Europa, olhamos e ambicionamos construir uma casa começada no telhado, moldando-nos na nossa volatilidade identitária.

Somos os velhos, os novos, os filhos e as filhas da Europa.

Hoje é o dia 9 de maio. Hoje é o dia da Europa. Sentemo-nos irmãos, numa mesma mesa redonda, debaixo dos olhos azuis da Europa, num céu estrelado em doze. Sentemo-nos como se sentaram, há 65 anos, em 1950, sete irmãos em acordo com o nome de Schumann e concordaram em iniciar algo novo, algo nascido da Europa e para a Europa.

Cinco anos antes acabara a dor, terminara o medo. Já não corriam rios encarnados, já não se alastrava a fúria de Zeus, espelhada nos olhos temerosos, cansados do medo e da guerra. Esta Europa nova, declarada por Schumann nascia em gestação de cinco anos, numa sala, falada entre irmãos que agora o queriam ser. É preciso que hoje, como há 65 anos, os filhos de Europa sejam homens nos seus passos. É preciso que os irmãos sejam os fios de seda e as fibras de lótus, o rosto, as curvas da face, as rugas e a força dos pés onde se assenta e mantém.

É preciso que a força de Zeus seja positiva e não destrutiva do entendimento. É preciso que os homens reinventem os campos verdes onde se sentava Europa. É preciso que o vento que sopra não seja levante e se transforme em brisa agradável à sua face. Hoje, como antes, é preciso que esta Europa, sentada nos Urais a olhar o ocidente não carregue a ira nas costas e que o olhar dos seus irmãos partilhe das suas cores, que estes irmãos se reinventem e a casa não tenha mais de uma divisão. É preciso que os irmãos se sentem numa mesa redonda, sem separações, iguais e solidários.

É preciso que a lenda de Europa seja e que a sua memória surja também a garantir o futuro.